1. A questão das chamadas férias judiciais é, para os magistrados, um não problema. Por estranho que pareça, neste momento, já só o Governo parece defender a sua existência. Ainda antes de o primeiro-ministro ter encapelado as águas com o seu discurso crispado e básico sobre o assunto, o subscritor destas linhas havia já tido a oportunidade de, pessoalmente, trocar algumas ideias interessantes e profícuas sobre ele com o ministro da Justiça. Com efeito, se o programa do PS não era absolutamente claro sobre a matéria, já o programa do governo parecia estabelecer as bases para o que veio depois a ser legislado. Entre as ideias que então se avançaram para dar um possível conteúdo útil a essa medida falou-se da necessidade de reservar períodos de não marcação de diligências judiciais que, não sendo em rigor um momento de paragem técnica de tribunais como o eram as férias judiciais, poderiam constituir um instrumento eficaz de gestão do tempo judiciário que permitisse concentrar acções de formação permanente de magistrados e funcionários sem perturbações para o normal período de funcionamento dos tribunais. Esta ideia era tão mais produtiva, quanto, no que respeita aos magistrados, o programa do Governo aponta para a criação de uma carreira plana e a especialização, o que implica, necessariamente, a introdução do factor formação no seu planeamento e progressão. Falava-se então do direito e dever à formação de magistrados e funcionários. O clima era pois de total cooperação na procura de soluções úteis e tecnicamente capazes de permitir concretizar uma alteração substancial no sistema de Justiça, que englobasse, articuladamente, um conjunto de propostas que, de forma harmónica, mobilizasse magistrados e funcionários e não ferisse as necessidades profissionais dos advogados e os interesses dos cidadãos. Eram tempos de utopia, como depois se veio a verificar.
2. Sobre nós caiu, entretanto, o discurso de propagandista fácil do primeiro-ministro, que, rapidamente, pôs em evidência que o que se pretendia com essa medida não era, afinal, um caminho de melhoria e consolidação de um sistema democrático e eficiente de Justiça, mas antes o alardear de propostas capazes de imputar, publicamente, a magistrados, advogados e funcionários a responsabilidade exclusiva pelo mau funcionamento da Justiça. Talvez ele já soubesse, entretanto, que não havia dinheiro para as prometidas reformas. A proposta não era pois técnica, nem séria. Era pura propaganda política. A sua justificação residia, afinal, nos privilégios injustificados. Ninguém sabe quais. Ninguém sabe de quem. Eram os deles…! Insinuava-se, sem se afirmar.
3. Curiosamente, quando, entretanto, magistrados e funcionários vieram dizer que se contentavam com os regimes de férias dos restantes corpos da função pública, o Governo insistiu em impor e manter um período de férias judiciais de 48 dias. Na verdade, para a maioria dos magistrados, esses regimes gerais de auto-governo de férias dos funcionários públicos compensavam já, muito satisfatoriamente, as suas necessidades e direito comum a férias e impediam, além disso, o ónus demagógico que o regime obrigatório de férias judiciais, o Governo insistia em fazer incidir sobre eles. Não o quis assim o Governo. As férias judiciais mantiveram-se. Só o Governo sabe porquê.
4. Mas, se o Governo sabe, o mesmo não acontece com magistrados, advogados, funcionários e cidadãos. Não se sabe, com efeito, se, depois da decisão do executivo, as férias dos magistrados e funcionários deverão, ainda assim, coincidir ou não com aqueles 48 dias de abrandamento no funcionamento dos tribunais. Não se sabe, além disso, por que razão, dizendo o Governo poder ganhar 10% de produtividade com a actual redução em 30 dias do período de abrandamento no funcionamento dos tribunais (férias judiciais), insiste, apesar de tudo, em manter aqueles 48 dias que restam e que, na mesma falsa lógica econométrica, se . findassem, acrescentariam mais 25% de produtividade. Não se sabe nada; nem o Governo explica. E não o faz, porque não pode; porque não tem explicação plausível.
5. Os resultados práticos e a desorganização dos serviços que se sucederão não interessam, nem foram, entretanto, calculados. O problema de funcionamento que essa leviana – porque mal pensada e pior planeada – medida técnica de gestão do serviço judiciário possa acarretar para a advocacia pouco importa. A perturbação que ela possa provocar ao comum dos cidadãos que fazem férias nos dias que medeiam entre Julho e Setembro e que, assim, poderão, se não quiserem faltar ás diligências judiciais marcadas para esse período, ter de interromper as férias para comparecer em tribunal é, para o Governo, absolutamente irrelevante. A possível inutilidade dessas diligências – antecipada com as faltas sistemáticas às providências cautelares marcadas nos turnos de férias – e a consequente perda de produtividade nem sequer foram pensadas. Os efeitos de propaganda política já estavam alcançados. Tanto bastava. É a vida; na sua versão actual!
António Cluny, Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Boletim da O. A. n.º 37
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quarta-feira, 27 de julho de 2005
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