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terça-feira, 26 de julho de 2005

Entrevista de Alberto Costa ao Público

Número de processos findos vai aumentar com diminuição de férias judiciais

Descongestionar os tribunais e libertar tempo e disponibilidade para os grandes processos. Este é o único objectivo do Governo ao apresentar a proposta de lei de redução das férias judiciais, afirma o ministro da Justiça, nesta sua primeira grande entrevista ao PÚBLICO. Não se trata nem de demagogia, nem de populismo, assegura, mas de uma medida para contrariar a realidade.

Por Eduardo Dâmaso, Paula Torres de Carvalho (textos) e Luís Ramos (fotos)

A polémica iniciativa de reduzir as férias judiciais "não é uma mudança contra ninguém. É uma mudança pela modernização", diz o ministro da Justiça, Alberto Costa. Nesta entrevista assegura que houve negociações com as associações sindicais e pedidos de parecer sobre a proposta de reduzir as férias dos tribunais e que já afastou a ideia de eliminar estas férias na sua totalidade.

PÚBLICO - Há um consenso por parte dos chamados "operadores judiciários" em considerar que a proposta da redução das férias judiciais é apresentada como uma forma demagógica da salvação da crise da justiça...

ALBERTO COSTA - De modo nenhum.

Por que razão o Governo elege esta proposta como prioritária, quando há outros problemas bem mais graves?

Apresentámos um plano para o descongestionamento dos tribunais que incluía um conjunto de medidas e onde a redução das férias judiciais era apenas uma delas. A atenção não se fixou nas outras e algumas têm grande importância. Foi neste quadro, que é abrangente, que se incluía uma medida que constava do programa apresentado à Assembleia da República e que visava uma redefinição do tempo de funcionamento dos tribunais. Há muitas, muitas décadas que os tribunais têm um sistema de férias grandes e de férias pequenas que totalizam 83 dias, 61 no Verão e 22 no Natal e na Páscoa. E este tipo de funcionamento, que era, no passado, apropriado ao ritmo da sociedade e que era concebível num serviço público, devia ser revisto.

Quer dizer que a sociedade mudou, mas as férias judiciais não...

Mudaram, por exemplo, em Espanha, onde encontramos um sistema que tem apenas um mês de paragem no Verão. Portanto, incluímos esta medida para que durante 83 dias o sistema judicial não oferecesse apenas três ou quatro por cento dos seus serviços, visto que só um número muito limitado de processos é tratado durante esse período.

Funcionários judiciais, advogados, magistraturas, estão todos contra...

O que pretendemos não foi indicar ninguém como bode expiatório do que corresse mal no sistema. Fui advogado durante dezenas de anos, conheço os magistrados, conheço a sua dedicação ao serviço público. E o que poderia estar mais longe do meu pensamento era conduzir qualquer campanha que visasse incutir esse estado de espírito na opinião pública.

Mas a mensagem que o Governo quis transmitir foi a de que não recuava perante interesses corporativos.

Quando partimos para uma medida destas não esperamos um coro de aplausos. Sabemos que ocorrerá necessariamente um concerto de críticas. Não é a ideia de ser mais ou menos popular que está por trás desta iniciativa. É o desejo de adoptar uma medida de modernização do sistema que aumente a sua capacidade de reforma.

Uma das críticas apontadas é a de que não houve negociação sobre o assunto...

Há certas medidas que, se forem submetidas a processos prévios de consensualização, como tantas vezes aconteceu no passado, não conduzem a nada. Já várias vezes esta medida foi anunciada. No entanto, nunca aconteceu.

Outra das principais críticas apresentadas baseia-se na ideia da impossibilidade de harmonização entre as férias judiciais e as férias dos funcionários, o que, aliás, já levou o Governo a fazer emendas na proposta inicial...

Até ao momento não tenho conhecimento de quaisquer emendas.

A primeira versão levada à Assembleia da República foi apresentada com alterações na última reunião do Conselho Superior do Ministério Público.

Não podemos simultaneamente reprovar que se não negoceie e depois reprovar que, em razão da negociação e da consulta, se modifique alguma coisa... Na realidade, houve negociações com as associações sindicais, houve pedidos de parecer a várias instâncias. Houve aperfeiçoamentos que introduzimos, nomeadamente no sentido de conferir aos presidentes dos tribunais da Relação e aos procuradores-gerais distritais um papel significativo na harmonização e na organização dos mapas de férias.

O que vai mudar no regime de férias do Tribunal Constitucional (TC)?

O Tribunal Constitucional tem um sistema muito particular que faz com que os juízes só disponham de um mês para gozar férias e que conduz a que cada um deles só possa, na prática, fruir desse direito durante 15 dias para assegurar a constância do funcionamento do tribunal. A nossa ideia inicial foi a de adoptar neste caso um padrão semelhante ao dos outros tribunais. Mas não queríamos interferir no seu processo de funcionamento, nomeadamente quanto aos pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade.

Esses pedidos de apreciação preventiva da constitucionalidade podem vir a ser avaliados por um tribunal sem o quórum necessário.

Estamos totalmente disponíveis para examinar esse efeito se se confirmar esse risco. Concluímos que será correcto que o regime tão especial do TC seja tratado em separado.

Um dos períodos que se prevêem mais críticos é o que vai de 15 de Julho a 31 de Agosto, que não é ainda considerado de férias mas no qual se admite poderem ser gozadas férias. Vai haver menos juízes nos tribunais, mas os processos continuarão a correr, existindo risco de os prazos se esgotarem. Como é que este problema vai ser resolvido?

Se não são férias, os prazos continuam a correr... Existe um problema a que é preciso dar resposta, que é o da substituição dos juízes. As férias judiciais abrangem tanto as férias de Verão como as outras férias e é preciso considerar esse conjunto quando, na proposta, se prevê que as férias individuais sejam preferencialmente gozadas nas férias judiciais.

O preâmbulo do diploma fala num estudo segundo o qual a produtividade dos tribunais aumentará com a redução das férias judiciais. Quem é o autor deste estudo e em que dados se baseia?

Existe no ministério um gabinete de política legislativa que estuda estas medidas e analisa os vários indicadores. Um deles respeita a processos findos ao longo do ano, em relação a cada mês. Com base no tratamento adequado desse e de outros indicadores, admito como possível um ganho no número de processos findos.

Reduzir as férias para diminuir a pendência de processos?

A nossa aposta vai no sentido da retirada de processos ou da limitação do número dos que têm de ir a tribunal (como os contratos de seguro, as contravenções, as transgressões, os cheques sem provisão). São medidas que visam libertar tempo para processos mais importantes. E essa vertente é decisiva para a modernização do sistema jurídico, para a aceleração e redução dos tempos de espera.

Esta medida também terá efeito no domínio da acção executiva?

Acrescento essa ideia à do descongestionamento. Pusemos em marcha já iniciativas que visam economizar centenas de milhares de horas de trabalho e de espera. Através da introdução dos requerimentos em juízo, da articulação com as aplicações correspondentes às custas, do reconhecimento da disponibilidade dos solicitadores e do acesso às bases de dados para facilitar as execuções.

Os advogados afirmam que vão ser os principais prejudicados com a redução das férias e acusam-no de nunca se ter disponibilizado para um debate público sobre essa matéria...

É preciso dizer que afastámos a ideia de eliminar as férias judiciais na sua totalidade, pensando nos advogados. Sempre estive disponível para debater esta matéria. Já a debati na televisão, em reuniões, já a apresentei e debati no Conselho Superior de Magistratura.


Conflitos de competências entre tribunais podem vir a ser resolvidos por via administrativa

O Governo analisa forma de pôr termo a conflitos entre tribunais em matéria de recursos
Um anteprojecto sobre o sistema de recursos cíveis e penais será brevemente apresentado à Assembleia da República, anuncia o ministro Alberto Costa.


PÚBLICO - Como tenciona acabar com os conflitos de competências entre os tribunais?

ALBERTO COSTA - Temos em discussão a temática dos recursos cíveis e penais. Foi elaborado e posto em debate um primeiro relatório, e dentro de poucos meses, haverá um ante projecto. Estamos também a actuar numa outra direcção que tem que ver com o problema de milhares e milhares de processos introduzidos, em regra, pelo MP, nos juízos de execução de Lisboa, por ter havido decisões de incompetência e, em resultado, terem sido também interpostos milhares de recursos para o Tribunal da Relação. Temos aqui o exemplo típico de uma actividade que tem de ser diminuída. E, por isso, apresentámos à Assembleia da República uma proposta no sentido de clarificar a competência dos juízos de execução.

Estamos a falar no cível...

Estamos a falar nos juízos de execução, o que significa enfrentar problemas de ocupação de tempo que não interessam ao cidadão. Saber se um tribunal é competente é uma questão instrumental. Discutir isso numa via de recurso é uma questão instrumental.

E relativamente aos recursos de processos-crime?

Está em curso o processo da revisão dos recursos penais. Os nossos inquéritos têm uma duração muito longa, em certos casos demoram anos. Essa realidade tem de ser alterada. Uma das nossas propostas tem que ver com a lei da orientação criminal que pensamos apresentar na Assembleia da República. A nossa Constituição, no artigo 209 estabelece que a política criminal é definida pelos órgãos de soberania e, na sua execução, participa o Ministério Público. Esta norma foi introduzida em 1997 e nunca foi objecto de desimpedimento legislativo. Vamos apresentar uma proposta de lei quadro, no último trimestre deste ano e, entre os vários aspectos a regular, tencionamos prever o estabelecimento pela AR, sob proposta do Governo, de prioridades na investigação criminal... A investigação de crimes mais graves não deverá ser prejudicada pela investigação de crimes significativamente menos graves.

De que forma se pretende agilizar o sistema de recursos penais?

Prevemos no nosso programa a criação de um mecanismo mais ágil, de preferência administrativo, que permitisse ao presidente da Relação, por hipótese, pôr termo a alguns conflitos. Só não queria estar, num momento em que está em curso um debate público sobre esta matéria, a aderir a uma específica solução. Agora temos de ter soluções mais expeditas, mais ágeis, de preferência soluções de carácter administrativo, atribuídas a um decisor e não a um conjunto de decisores. O que importa é uma solução ágil, que evite esse espectáculo da matéria da competência se arrastar sem decisão final durante anos, com as consequências que se sabem.

Há um excesso de garantismo em Portugal?

Quando pensamos nos direitos, liberdades e garantias tal como hoje se encontram constitucionalmente regulados, não me parece que exista um excesso de garantismo. Há soluções irracionais. Não se pode dizer que, em qualquer matéria, o cidadão tem o direito a provocar três decisões do Estado sobre o seu caso. Quem defenda isto não se está a basear em nenhuma declaração de direitos, nem em nenhuma constituição. Está a formular um propósito que, em certos casos, conduz a que se prolongue excessivamente o tempo de exame de um caso. E às vezes, não são três, mas mais, as instâncias que se ocupam do problema. Não podemos confundir soluções irracionais com garantismo.

O Supremo Tribunal de Justiça deve permanecer como mais uma instância de recurso ou o processo deve acabar na Relação?

No processo que se encontra em curso, está a ser debatida também a função e o perfil que se deve esperar da parte do Supremo. E na realidade existe uma preocupação no sentido de o definir como um tribunal com uma função de uniformização da jurisprudência.

E.D./P.T.C.


Ministério Público tem de ter autonomia, mas também hierarquia e responsabilidade

É preciso desenvolver e estimular a autonomia, a hierarquia e a responsabilidade do Ministério Público, considera Alberto Costa. Sobre a necessidade de outro procurador-geral da República julga que é "prematuro e impertinente exarar juízos nessa matéria".

PÚBLICO - Qual a sua posição quanto às alterações previstas no domínio do estatuto do Ministério Público (MP) e da sua lei orgânica?

ALBERTO COSTA - É sobretudo importante pôr em marcha os actuais instrumentos de natureza directiva, avaliativa, disciplinar e no domínio da própria responsabilidade que se encontra regulada no estatuto.

Tem defendido o reforço da hierarquia do MP. De que forma?

A hierarquia deve existir de modo a assegurar a coerência e a expectabilidade da posições. Não temos interesse em ter duas magistraturas parecidas. O Estado democrático não precisa de uma magistratura judicial bis. É preciso criar uma forte identidade com autonomia, hierarquia e responsabilidade

E essa identidade não existe? Ou está enfraquecida?

É preciso desenvolvê-la, estimulá-la, dar-lhe instrumentos de orientação e um deles é a tal lei-quadro.

E é necessário que o MP se organize em função das prioridades definidas para a investigação criminal...

Exactamente.

E isso requer outro procurador-geral da República?

É prematuro e impertinente exarar juízos nessa matéria. Acho que se deve cultivar a coesão e a solidariedade institucional e julgo que seria contra- indicado fazer conjecturas, fazer previsões ou criar cenários.

Acho que não é a melhor atitude perante situações sensíveis como são estas.
Vai alterar a formação dos magistrados?


Estamos a fazer uma reforma intercalar nos currículos do CEJ [Centro de Estudos Judiciários], em que se inclui a investigação criminal e gestão do inquérito. A ideia é, justamente, levar alguma preparação específica neste domínio para começar a enfrentar com mais condições o problema dos inquéritos que demoram tempo de mais.

O arrastamento dos inquéritos deve-se também a um problema de formação?

Existe também um problema de preparação. Gerir um processo, é qualquer coisa que também se aprende.

Há uma ideia de grande proliferação de responsabilidades em matéria do combate ao terrorismo. É ou não à PJ que deve competir essa tarefa?

Na abordagem europeia destas matérias, a palavra de ordem é a coordenação das estruturas existentes. Em toda a Europa há várias estruturas que têm de partilhar informações. Mas é a PJ que tem a competência para fazer a investigação desse tipo de crimes.

Admite a possibilidade de autorização de escutas telefónicas por via administrativa no quadro do combate ao terrorismo?

Em Portugal só pode haver escutas com autorização judicial. Temos um quadro constitucional muito restrito nesta matéria e, aqui, é que há que falar de garantismo. Sob esta bandeira constitucional, esta é a regra e o imperativo.

Há alguns países que admitem as escutas administrativas. Em Portugal, há quem defenda essa tese...

A Constituição não autoriza. Quando foi discutida a lei dos serviços de informações da República, essa possibilidade não foi suscitada. É a regra constitucional que tem de prevalecer.

E.D./P.T.C.

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