Blog de apoio ao CUM GRANO SALIS

domingo, 30 de dezembro de 2007

Sentir o Direito - Música e crime

Seria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música
Todos nos recordamos do filme em que um grupo de delinquentes incita à violência contra polícias, ao ritmo do hip-hop. Tais fenómenos são frequentes. Movimentos políticos utilizaram a música para estimular a acção violenta, provocando estados de alma.
Os hinos em que grandes multidões dissolvem o indivíduo são uma constante da História. Hitler serviu-se magistralmente da ópera de Wagner para provocar, em comícios, um sentimento de orgulho racial e de belicismo.
Apesar disso, a música nunca é, em si – sem considerar as letras das canções –, algo de mau. Dizia Cecília Meirelles, a grande poetisa brasileira: “Eu canto porque o instante existe Sei que canto. E a canção é tudo.”
O cientista e filósofo Daniel Dennett lembra o papel da nona sinfonia de Beethoven na acção violenta dos jovens da ‘Laranja Mecânica’. O filme de Kubrick, inspirado na obra de Burgess, originou uma onda de violência que levou Dennett a questionar se a música deveria ser proibida, no caso de podermos garantir que estimula efeitos criminosos. O autor respondeu negativamente.
Na verdade, não está provada uma relação de causa e efeito entre a música e certa conduta. Sabemos apenas que cada pessoa procura na música algo de diferente e profundamente seu. Nada existe numa peça musical que cause o efeito de um vírus sobre o corpo indefeso. Assim, seria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música.
No entanto, deve considerar-se a democratização da cultura musical uma meta política que permite desenvolver aspectos profundos das capacidades humanas. A música digna desse nome permite atingir emoções e compreender coisas pertencentes a um mundo que a comunicação vulgar não atinge.
Se quisermos relacionar música e crime de uma forma pragmática podemos citar o caso brasileiro em que a música humaniza a favela ou, de um modo geral, as experiências de terapia através da música. A orquestra de Barenboim, juntando judeus e palestinianos, é um excelente exemplo de pacifismo. No ‘Titanic’, só os músicos mantiveram a luz da vida até ao último instante, afundando-se a tocar.
Num Natal recente, constatei que os reclusos de uma cadeia formavam grupos musicais e que essa forma de expressão era essencial para eles. A música encerrada em casas de espectáculos muito elitistas ou reduzida a fenómenos de moda não atinge, por vezes, a reinvenção da vida a que todos temos direito. E toda a justiça, como tentativa de reintegração, é uma reinvenção da vida. É ideal, tal como a poesia ou a música.
E há outra possibilidade?
Não. Como explica Cecília Meirelles, “a vida só é possível se reinventada”.
Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal, no Correio da Manhã

sábado, 29 de dezembro de 2007

Advogados à solta (II)

Por Francisco Teixeira da Mota, Advogado

O advogado fizera afirmações sobre o Ministério Público que não respeitavam os deveres de moderação e objectividade Enquanto por cá, por respeito à época e enquanto se aguarda a tomada de posse dos eleitos para os órgãos da Ordem, os advogados se remeteram ao silêncio, noutros países os advogados vão dando que falar.

No passado dia 13, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) pronunciou-se quanto às actividades, ou melhor, quanto às declarações públicas de Aldo Foglia, um advogado suíço que fora condenado disciplinarmente pela Ordem dos Advogados local.

Foglia representava um grupo de clientes de um banco que tinham visto as suas contas reduzidas a zero num caso de desvio de dinheiros efectuado por um banqueiro que aparecera morto em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do processo contra terceiros, que tivessem colaborado ou de qualquer forma ajudado o desvio de 60 milhões de francos suíços.

Para o Ministério Público não havia provas de que, fosse quem fosse, dentro do banco se tivesse apercebido ou, ainda menos, colaborado ou de qualquer forma ajudado o desvio dos 60 milhões de francos suíços efectuado pelo banqueiro egoísta. Isto apesar de, por exemplo, parte substancial do dinheiro desviado ter passado por um clube de futebol local onde era membro dos órgãos sociais um director do banco em causa.

Foglia interpôs recurso dessa decisão e, entretanto, falou à imprensa. E disse que o inquérito conduzido pelo procurador Stauffer era "apressado e superficial", justificando-o com o exemplo atrás referido. Foglia falou mais do que uma vez à imprensa sobre o assunto, referindo, por exemplo, que "era difícil acreditar que ninguém (dentro do banco) soubesse o que se estava a passar" e deu também uma entrevista à televisão.

O banco não gostou e intentou uma acção judicial para ser indemnizado pelos danos à imagem que lhe tinham sido causados com as declarações de Foglia, mas veio a desistir da mesma. Já o processo disciplinar instaurado pela Ordem dos Advogados foi até ao fim com a condenação de Foglia numa multa de 1500 francos suíços (1024 euros, na altura). Decisão confirmada pelos tribunais suíços e que levou Foglia até Estrasburgo queixar-se de ter sido violada a sua liberdade de expressão.

Para a Ordem dos Advogados, tal como para os tribunais suíços, Foglia tinha violado diversos deveres como advogado: tinha promovido um processo mediático sobre o caso do desvio de fundo, fizera afirmações sobre o Ministério Público que não tinham respeitado os deveres de moderação e objectividade, pronunciara-se em público sobre um processo pendente, o que poderia influenciar os juízes, atentara contra a dignidade da profissão e, ainda, obtivera publicidade. E a defesa dos interesses do cliente ou do interesse público não justificavam tais afirmações. Por tudo isto devia ser punido.

O TEDH, no entanto, não entendeu como justificada a punição de Foglia, mesmo que simbólica, por considerar que a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem protegia as suas palavras.

Para o TEDH, o carácter mediático do processo antecedia as declarações de Foglia, que surgiam num contexto em que o descontentamento dos seus clientes era manifesto. As suas declarações continham críticas que não eram dirigidas contra as qualidades pessoais e profissionais da pessoa do Ministério Público mas sim contra a forma como tinha desempenhado as funções de procurador naquele processo. Para o TEDH, tais declarações, embora podendo denotar uma certa falta de consideração pelas entidades que investigaram o processo, não podiam ser qualificadas como graves ou injuriosas. E, assim, o TEDH reconheceu ter havido uma violação do art.º 10.º da CEDH, que consagra a liberdade de expressão, e condenou o Estado suíço a devolver a Foglia os 1024 euros e ainda mais 1990 euros de despesas.

Mas os advogados nem sempre querem falar. Às vezes querem mesmo que não falem... deles, como foi o caso do advogado norte-americano John Henry Browne, que intentou uma acção contra a AVVO, Inc. no tribunal de Seattle. Pretendia o advogado que a empresa AVVO deixasse de publicar na Internet uma página com classificação (ratings) de advogados em que ele aparecia com uma classificação de 5.5 em 10 e o indemnizasse pelo mal causado.

Nos EUA, é assim: há lugares com classificações de advogados quanto às suas qualidades profissionais e de especialização. Tais classificações, como o juiz Robert Lasnik lembrou no passado dia 18, estão protegidas pela liberdade de expressão consagrada na Primeira Emenda constitucional.

Para este juiz, o advogado não tinha qualquer razão porque a classificação feita pela AVVO era uma classificação subjectiva, uma opinião, embora baseada em critérios variados e subjectivos: qual o valor a dar ao número de anos de experiência profissional? Ou ao facto de se ter ou não processos disciplinares na Ordem?

Por isso mesmo, porque tais classificações nunca poderiam ser tomadas como afirmações de factos verdadeiros mas como meras classificações da AVVO e nada mais, entendeu o tribunal não ter qualquer sentido a pretensão do advogado Browne de pretender silenciar a AVVO. Mesmo que as classificações da AVVO tivessem coisas tão surpreendentes como o facto de um juiz do Supremo Tribunal federal ter uma classificação inferior ao do advogado da AVVO, como lembrou o juiz Lasnik na sentença...

Também tem a data de 18 de Dezembro um acórdão do Nono Circuito, que vem, pela primeira vez em sede de recursos federais, admitir que a lei do ADN, que obriga todos os condenados criminais a entregarem uma amostra do seu ADN, levanta problemas de legalidade no seu confronto com a Lei da Restauração da Liberdade Religiosa, que proíbe o Governo de interferir com direitos religiosos. Até hoje esta legislação tem sido sucessivamente considerada constitucional mas, agora, abre-se o debate sobre a sua legalidade tendo em conta a liberdade religiosa. À atenção dos canonistas.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Conselho de Ministros

O Conselho de Ministros aprovou, hoje, os seguintes diplomas:



  • Decreto-Lei que estabelece deveres de comunicação, informação e esclarecimento à administração tributária para prevenir e combater o planeamento fiscal abusivo
    Este Decreto-Lei visa, na sequência de uma autorização legislativa, o reforço da eficácia no combate à fraude e à evasão fiscais, mediante a adopção de medidas preventivas que possibilitem uma actuação mais eficaz e célere da administração tributária, designadamente através da adopção de medidas que estejam em linha com as melhores práticas europeias e internacionais.
    Neste contexto, o diploma visa prevenir e combater as práticas de planeamento fiscal abusivo mediante a imposição aos promotores que aconselham, propõem e comercializam esquemas ou actuações de planeamento fiscal de obrigações específicas de comunicação, informação e esclarecimento à administração tributária sobre as operações que tenham como finalidade, exclusiva ou predominante, a obtenção de vantagens fiscais.
    Assim, prevê-se que os promotores de esquemas de planeamento fiscal – conceito que abrange qualquer entidade com ou sem personalidade jurídica, residente ou estabelecida em qualquer circunscrição do território nacional – que, no exercício da sua actividade económica, prestem, a qualquer título, com ou sem remuneração, serviços de apoio, assessoria, aconselhamento, consultoria ou análogos no domínio tributário, relativos à determinação da situação tributária ou ao cumprimento de obrigações tributárias de clientes ou de terceiros, ficam obrigados a comunicar à Direcção-Geral dos Impostos (DGCI) os esquemas ou actuações de planeamento fiscal propostos a clientes ou a qualquer interessado. Do mesmo modo, estes promotores devem informar sobre a respectiva descrição, com indicação e caracterização dos tipos negociais, das estruturas societárias e das operações ou transacções propostas ou utilizadas, bem como da espécie e configuração da vantagem fiscal pretendida, assim como sobre a base legal relativamente à qual se afere, se repercute ou respeita aquela vantagem fiscal.
    Sempre que não seja possível recolher dos promotores as indicações exigíveis sobre os esquemas de planeamento fiscal adoptados, o que ocorre quando o esquema não tenha sido objecto de proposta ou acompanhamento por um promotor ou o promotor não seja residente ou não esteja estabelecido em território português, prevê-se que os próprios utilizadores fiquem obrigados às comunicações previstas, ficando, porém, disso afastadas, na generalidade dos casos, as pessoas singulares.
    Os esquemas ou actuações de planeamento fiscal sujeitos a deveres de comunicação são objecto de uma enumeração taxativa com base na presença de certas características, o que assegura a necessária certeza jurídica na definição das obrigações das entidades abrangidas.
    Com as informações obtidas, que não compreendem qualquer indicação nominativa ou identificativa dos clientes ou interessados relativamente aos quais tenha sido proposto o esquema de planeamento fiscal ou que o tenham adoptado (pelo que não são compreendidos dados pessoais), proporciona-se à Direcção-Geral dos Impostos, que fica responsável pela elaboração de uma base de dados de esquemas de planeamento fiscal na directa dependência do Director-Geral dos Impostos.

  • Proposta de Lei que aprova o regime jurídico do processo de inventário e altera o Código Civil, o Código do Processo Civil, o Código do Registo Predial e o Código do Registo Civil
    Esta Proposta de Lei a submeter à Assembleia da República, hoje aprovada na generalidade para consultas, visa permitir que as conservatórias e os cartórios notariais possam tratar dos processos de inventário, assim descongestionando os tribunais.
    Com esta medida procuram-se atingir dois objectivos: descongestionar os tribunais e tornar o processo de inventário mais célere.
    Por um lado, pretende-se descongestionar os tribunais, evitando que estes sejam chamados a intervir em matéria de inventário, dado que muitas das questões suscitadas nesse processo não justificam a sua intervenção. As conservatórias e os cartórios notariais passam a tramitar estes processos, garantindo-se sempre o direito de recurso aos tribunais, em caso de discordância. Esta medida está incluída na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de Novembro, que consagra novas medidas de descongestionamento e prossegue o esforço de descongestionamento iniciado em 2005 com o Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais. Em 2006, com as medidas desse Plano conseguiram-se resultados muito significativos: pela primeira vez, em mais de 10 anos, evitou-se que a pendência crescesse 100 000 a 120 000 processos/ano.
    O objectivo desta medida é garantir que a pendência processual não volta aos níveis de crescimento que se verificaram em anos anteriores com mais de 100.000 processos/ano. Com esta medida, podem deixar de entrar em tribunal cerca de 7000 processos/ano, ou seja cerca de 3,9% das acções da área da justiça cível entradas em 2006 (excluindo acções executivas).
    Por outro lado, pretende-se que o processo de inventário deixe de ser um dos processos mais morosos do sistema judicial, pois trata-se de uma matéria muito relacionada com a vida das pessoas que deve ter um tratamento mais rápido e eficaz.

  • Decreto-Lei que adopta medidas de simplificação do registo predial e da formalização dos actos relativos a bens imóveis
    Este Decreto-Lei, hoje aprovado na generalidade para consultas, visa, no âmbito do programa Simplex, promover a facilitação da vida dos cidadãos e das empresas, através da simplificação dos controlos de natureza administrativa, da desformalização de procedimentos e da eliminação de actos e práticas registrais e notariais que, no sector do registo predial, não importem um valor acrescentado.
    Desta forma, são eliminadas formalidades, actos e simplificados procedimentos com novas garantias de segurança jurídica. Promove-se, igualmente, a utilização de meios electrónicos.

  • Decreto-Lei que aprova medidas de simplificação e acesso à propriedade industrial alterando o Código da Propriedade Industrial e o Decreto-Lei n.º 15/95, de 24 de Janeiro
    Este Decreto-Lei, hoje aprovado na generalidade para consultas, vem, no âmbito do programa Simplex, agilizar e simplificar o procedimento de protecção de direitos de propriedade industrial, visando a promoção de investimento em Portugal, através da simplificação de procedimentos e da redução de custos.
    Deste modo, melhora-se o atendimento nos serviços de propriedade industrial, (i) diminuindo os prazos para a concessão desses direitos, (ii) eliminando formalidades, (iii) criando uma política de preços transparente, (iv) introduzindo diversas simplificações e promovendo os meios electrónicos.

  • Decreto-Lei que procede à criação, nos termos da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, do Julgado de Paz do Agrupamento dos concelhos de Aguiar da Beira, Penalva do Castelo, Sátão, Trancoso e Vila Nova de Paiva, do Julgado de Paz do Agrupamento dos concelhos de Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Mértola e Ourique, do Julgado de Paz de Odivelas e do Julgado de Paz do Agrupamento dos concelhos de Palmela e Setúbal
    Este Decreto-Lei vem criar quatro novos Julgados de Paz de acordo com os critérios científicos estabelecidos no Plano de Desenvolvimento da Rede dos Julgados de Paz.
    Assim, são criados:
    1. Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Aguiar da Beira, Penalva do Castelo, Sátão, Trancoso e Vila Nova de Paiva;
    2. Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Mértola e Ourique;
    3. Julgado de Paz do Concelho de Odivelas;
    4. Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Palmela e Setúbal.
    São definitivamente abandonados os critérios casuísticos que presidiram à criação dos anteriores julgados de paz, e criam-se as condições para que no momento da criação destes novos tribunais de proximidade a sua procura potencial seja transformada em procura efectiva.
    Com este novo alargamento, a rede dos julgados de paz passa a abranger 43 concelhos e uma população superior a 2 700 000 habitantes, promovendo assim, em estreita parceria com as autarquias envolvidas, uma justiça de proximidade com o cidadão, que se traduz numa alternativa rápida e económica ao sistema tradicional de administração da justiça.
    Os princípios orientadores e caracterizadores dos julgados de paz, ao permitirem e pugnarem pela participação e responsabilização das partes na superação dos conflitos, pelo recurso a um meio não adversarial de resolução de litígios – a mediação –, ou submissão ao julgamento pelo juiz de paz, consubstanciam-se num contributo assinalável na ambicionada mudança do sistema de administração da justiça, no sentido de a tornar mais acessível aos cidadãos, ao mesmo tempo que contribuem para o descongestionamento dos tribunais judiciais.
    Desde 2002, ano de entrada em funcionamento dos primeiros quatro julgados de paz, que estes tribunais têm aumentado anualmente o número de processos entrados, tendo sido atingido, durante o ano de 2007, o número de 17 000 processos entrados. O tempo médio de resolução dos conflitos tem-se mantido estável em cerca de dois meses, não obstante os sucessivos aumentos do número de processos entrados, o que demonstra a boa capacidade de resposta dos julgados de paz.

  • Decreto-Lei que extingue o Estabelecimento Prisional de Santarém e os Estabelecimentos Prisionais Regionais de Castelo Branco e de Portimão e altera a designação do Estabelecimento Prisional Regional de Évora
    Este Decreto-Lei vem, no âmbito das políticas de remodelação e modernização do actual parque penitenciário, extinguir as instalações afectas aos Estabelecimentos Prisionais Regionais de Castelo Branco e Portimão, e do Estabelecimento Prisional de Santarém, uma vez que estas infra-estruturas não reúnem as condições de habitabilidade que as actuais normas de segurança e bem-estar da população reclusa exigem.
    É, igualmente, alterada a designação do Estabelecimento Prisional Regional de Évora, que passa a designar-se de Estabelecimento Prisional de Évora, o qual passa a estar afecto a reclusos que necessitam de medidas especiais de segurança, nomeadamente reclusos que exercem ou exerceram funções em forças de segurança.

  • Decreto-Lei que assegura a execução e garante o cumprimento, na ordem jurídica interna, das obrigações decorrentes para o Estado Português do Regulamento (CE) n.º 1013/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Junho de 2006, relativo à transferência de resíduos, e revoga o Decreto-Lei n.º296/95, de 17 de Novembro
    Este Decreto-Lei vem estabelecer um novo regime jurídico relativo à transferência de resíduos, assegurando a execução e garantindo o cumprimento, na ordem jurídica interna, de um regulamento comunitário sobre a matéria.
    Este novo regulamento vem simplificar e clarificar os procedimentos actuais de controlo das transferências de resíduos, bem como reforçar e consolidar os mecanismos de fiscalização reduzindo-se o risco de transferência de resíduos não controlados.
    No capítulo da simplificação, procede-se à eliminação da obrigatoriedade de subscrição de seguro de responsabilidade civil por danos causados ao ambiente ou à saúde pública, uma vez que a mesma decorre das obrigações inerentes à actividade de transporte de mercadorias para a qual já existe regulamentação específica que cobre tal matéria.
    Prevê-se o estabelecimento de um quadro mais restritivo para transferências de resíduos urbanos destinados a valorização, seguindo abordagem idêntica à adoptada no caso das transferências para eliminação, orientada para os princípios da proximidade, da prioridade da valorização e da auto-suficiência.
    Destaca-se, ainda, a criação, no caso de transferências de resíduos não perigosos destinados a valorização, de um procedimento de transferência acompanhada de determinadas informações, garantindo desta forma um melhor controlo das transferências por parte da administração.
    Por último, fixa-se que a autoridade nacional competente pela aplicação do novo Regulamento, é a Agência Portuguesa do Ambiente e estabelecem-se os procedimentos necessários para a sua aplicação, bem como o respectivo quadro sancionatório.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Advogados à solta

Por Francisco Teixeira da Mota, Advogado

As polémicas públicas entre advogados são, normalmente, de grande contundência verbal

A agitação judiciária da semana passada foi a eleição do advogado António Marinho Pinto, que apoiei na sua candidatura, para o lugar de bastonário da Ordem dos Advogados e a sua repercussão pública.
As mediatizadas tomadas de posição dos ex-bastonários José Miguel Júdice, que igualmente apoiei ao tempo da sua candidatura a bastonário, e António Pires de Lima foram radicais como não é muito habitual no nosso país. O novo bastonário não vestiu a pele de polemista e teve razão em não o fazer.
Quanto aos processos disciplinares de que se falou agora, tenho a dizer que embora tenha criticado aqui nesta coluna com violência as declarações de José Miguel Júdice, também igualmente discordei que fosse necessário submeter um ex-bastonário a processos disciplinares quando estavam em causa só eventuais "excessos de linguagem". E convém ter presente que o novo bastonário nas suas polémicas públicas não é conhecido por ser brando na utilização das palavras.
De resto, a sua polémica via blogues com o advogado José António Barreiros, que apoiei na sua candidatura para o conselho superior, é bem esclarecedora do grau de contundência que a discussão entre advogados pode atingir.
Ainda é cedo para saber como vão ser as relações entre os advogados e a sua Ordem neste mandato de Marinho Pinto mas seria de toda a conveniência evitar que as naturais e insanáveis divergências impludam a Ordem.
Se é verdade que o Estado democrático de direito tem de assentar na separação dos poderes que na nossa Constituição é consagrada através da Assembleia da República, do Presidente da República, do Governo e dos tribunais, não é menos verdade que no mundo dos tribunais é essencial que haja um órgão representante dos advogados que seja actuante, capaz não só de resolver os seus problemas internos como igualmente de intervir de forma socialmente útil e relevante na sociedade, nomeadamente na defesa dos direitos dos cidadãos.
Enquanto se discute acaloradamente quem representa quem na Ordem ou quais os interesses sociais por detrás de cada bastonário em polémica, os cidadãos também se preocupam com outras questões de carácter legal talvez mais relevantes.
As medidas legais e práticas que se anunciam quanto ao aumento da implementação de serviços de videovigilância e do controlo da nossa vida em geral pelo Estado, intrometendo-se cada vez mais não só dentro das nossas casas como dentro do nosso corpo, são um evidente motivo de preocupação.
As medidas de videovigilância que foram adoptadas para o Porto, nomeadamente o facto de a captação de imagens só ser feita à noite, embora sejam sempre violadoras de alguma privacidade e do direito à imagem de cada um, parece estar dentro do razoável numa ponderação constitucional dos direitos e interesses em jogo. A ver vamos. Mas isso não impede que seja bem visível o crescendo de intromissão do Estado nas nossas vidas e intimidade. A criação das bases de dados do ADN onde passará a constar material genético de pessoas condenadas criminalmente, de pessoas desaparecidas, para sua localização e de cidadãos comuns que quiserem aderir a esta catalogação nacional, para já, é um bom exemplo.
Estas bases já existem há algum tempo em Inglaterra ou em França onde se verificou, com o decorrer do tempo, uma crescente liberalização legislativa na "doação obrigatória" de material genético. Em França, recentemente, miúdos que estavam a retirar umas placas de identificação das ruas foram obrigados a entregar o seu ADN.
Mas também no campo do nosso corpo e da saúde o afã existencial da ASAE tem levantado inúmeras preocupações públicas. Para além dos mitos criados sobre a actividade daquele órgão de policia criminal, a verdade é que o comunicado da ASAE não afasta todas as questões levantadas na petição nacional contra as suas excessivas actividades, que a opinião pública não deixa de sentir com algum incómodo. Se o cumprimento da lei, em princípio, não deve levantar objecções, já aplicações pouco flexíveis com interpretações da lei fundamentalistas levantam as maiores dúvidas e podem ser um factor não só de maior injustiça social como de aniquilação de realidades económicas, sociais e culturais que devem ser respeitadas. As bolas-de-berlim têm de continuar a ter o direito de nos surgir, na praia, de dentro duma cesta onde repousam todas juntas enquanto esperam a chegada da suave tenaz ou num tabuleiro já algo torto com o fundo com açúcar espalhado.
Há aqui que pensar, como em muitas outras áreas de actuação intrusiva do Estado, num novo direito emergente dos cidadãos que se contrapõe à crescente perda de privacidade e de individualidade: o direito a não ser saudável.
Este novo direito tem a sua legitimação no direito à diferença e à privacidade quando confrontados com a acção normalizadora do Estado no campo da saúde pública e privada. Nem todos nós queremos ser saudáveis ou ter um padrão predeterminado de índice de massa corporal ou cultural, segundo os padrões da época ou do governo em que vivemos.
Dado que todos os corpos terminarão de uma maneira inglória, não parece assim tão justificada a necessidade de os preservar saudáveis até esse momento. Pelo menos é seguramente aceitável que haja quem tenha essa opinião e esteja disposto a não querer ser saudável e a reger-se por padrões culturais em que tal objectivo não é primordial.
Parece-me inequívoco que temos o direito a continuar a poder comer chamuças caseiras fantasticamente temperadas e fritas sem nos preocuparmos com o mal que nos fazem ao colesterol.
Para a semana continuamos a falar de advogados.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

As noites brancas de Inverno

Por José Miguel Júdice, no Público

Não aceito que a investigação criminal esteja à mercê de rivalidades entre a PJ e a Procuradoria-Geral da República

As noites brancas de S. Petersburgo são mundialmente famosas. Por alturas do solstício de Verão, a luz do Sol praticamente não deixa de ser vista durante as 24 horas do dia. S. Petersburgo é também famosa pelas suas máfias, segundo consta. Foram estas as imagens que se me suscitaram quando tomei conhecimento pelos media da operação policial realizada no Porto com grande aparato e a que foi dado o nome de Noites Brancas, apesar de se realizar pela altura do solstício de Inverno.
Se a PJ conseguiu desmantelar com tanta facilidade os gangs (é assim que os media se lhes referem) que controlam a segurança da noite do Porto e que serão responsáveis por seis mortes violentas em menos de seis meses, trágicos factos que são incomuns em Portugal, devemos sentir-nos muito seguros: por um lado pela enorme eficácia das polícias e, por outro, pela surpreendente incompetência dos gangs.
Se admitirmos que assim é - e não só não custa, como também dá gosto acreditar nisso -, este texto deve acabar de imediato, com algumas palavras de felicitações e com os amáveis leitores a sentirem-se de imediato invadidos pelo espírito natalício.
Mas a mente humana tem destas coisas, não sou capaz de evitar deixar-me pelo contrário invadir por algumas dúvidas e preocupações. Tentei resistir, lembrei-me da bondade ínsita na natureza humana, enchi-me de boa vontade para ter a paz prometida na terra, contrariei os meus instintos de advogado. Não fui capaz. O artigo tem pois de continuar. Peço que os homens de boa vontade me perdoem.
Em primeiro lugar, as facilidades. Então uma operação que estava a ser preparada há tanto tempo, que implicou negociações dentro da PJ por causa da luta sindical em curso, que teve de mobilizar voluntários de todo o país às centenas, fez-se sem uma indiscrição?
Admitamos que sim, apesar de a luta contra o tráfico de droga não conseguir tal proeza. Mas, então, tanta gente soube e o único que não foi informado foi o procurador-geral da República? Se tivesse sido informado, não teria adiado (ou antecipado) por dois ou três dias a nomeação do procurador especial? Admitamos ainda que o titular da acção penal, o supremo responsável pela direcção da investigação criminal, não sabia porque não tinha de saber. Mas, então, qual a razão pela qual esta operação de tanto sucesso não foi feita uns tempos antes, evitando-se desse modo que fossem mortas mais pessoas e que entre os mortos estivesse, segundo dizem os media, um cidadão que sabia quem tinha morto outros por ter assistido ao seu assassinato?
Admitamos que só agora se chegou a um grau de investigação tal que antes teria sido inviável obter estes resultados. Admitamos mesmo que isto aconteceu, apesar de os media terem sido informados de quem tinha sido morto por engano ou sem engano. Mas, então, qual a razão de uma tão longa e detalhada investigação não ter sido partilhada com o procurador-geral da República?
Por estas e por outras, o meu espírito está muito pouco natalício. Sobretudo também porque estou ainda em estado de choque, por notícias não desmentidas, de que procuradores da República do Porto se recusaram a integrar a equipa da procuradora especial nomeada para o caso e, horror dos horrores, tendo vindo de Lisboa. E por comunicados da associação sindical da PJ, no qual o titular da acção penal e o supremo responsável pela direcção da investigação criminal são atacados de forma radical.
De facto, mesmo que possa admitir tudo o que me custa a aceitar, há algo que não consigo engolir, até porque há anos venho lutando contra isso. Não aceito que a investigação criminal esteja à mercê de rivalidades entre a PJ e a PGR (não teria sido uma boa ideia que para colher os louros da operação "noites brancas" estivessem juntos o director nacional da PJ e o PGR?) e das lutas feudais entre barões, condes e marqueses, como afirmou o conselheiro Pinto Monteiro e estes acontecimentos revelam. Como o revela o sintomático facto de ter sido a sensatez do presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público - e não a cadeia hierárquica - a repor a ordem e, afinal, a legalidade.
Não consigo, por tudo isto, evitar que o meu espírito perverso me leve para outros lados. Não consigo evitar admitir que esta aceleração da investigação criminal no Porto teve a ver com a luta interna na magistratura em questão e entre esta e a PJ. Nesse sentido chamo à colação o facto de ter sido tão bem preparada com os media, que, curiosamente, todos souberam instantaneamente dela e todos deram as mesmas notícias e revelaram os mesmos factos que deveriam estar em segredo de justiça.
Por isso, não consigo evitar admitir que a precipitação das acções espectaculares possa ter prejudicado a investigação em vez de a ter terminado, que deter presumíveis criminosos é mais fácil do que investigá-los e, mantendo-os em liberdade, ir coligindo indícios e provas.
Posso estar enganado. Desejo estar enganado. É verdade, já me estava a esquecer, os dirigentes da UGT, ao fim de 20 anos, com as vidas profissionais destruídas, foram absolvidos por nada se ter provado contra eles. O meu respeito perante eles e a confirmação de que a presunção de inocência é um valor. O processo Casa Pia, esse, continua. Com presumidos inocentes também. Boas festas para todos!
Advogado

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

De Rastignac a Hugo Chávez

Por José Miguel Júdice, no Público

O bastonário futuro é um justicialista. Insulta tudo e todos, sem conta, peso nem medida

Em 8 de Dezembro de 2004, faz amanhã três anos, tinha acabado de ser eleito o bastonário seguinte. Nesse dia, publiquei no Diário de Notícias um texto que intitulei "o espectro da proletarização da advocacia". No artigo indicava 14 medidas que constituíam um programa estratégico para o triénio que se iniciava. Se isso tivesse sido concretizado, ele teria podido contrariar "a pulsão autofágica e desagregadora da nossa profissão". Nenhuma das 14 medidas foi implementada ou prosseguida pelo bastonário seguinte. Percebo por isso que, publicamente, o bastonário Pires de Lima tenha dito, na passada sexta-feira, que estava totalmente desiludido com o apoio que lhe dera. Como eu há muito estava arrependido de o ter convidado a ser candidato a presidente do conselho distrital de Lisboa, onde obteve a visibilidade que no nosso tempo faz as vezes da qualidade.
Terminava o meu artigo com um voto, em que acreditava pouco (por isso escrevi o artigo...), e que recordo: "Estou certo de que, com a ajuda de todos, o novo bastonário vai ficar registado como o que conseguiu mudar a realidade da profissão para melhor, afastando o espectro de um projecto populista, demagógico e regressivo."
Há uma semana foi eleito o bastonário futuro. O fracasso clamoroso do meu sucessor mede-se nesse resultado: não afastou o espectro da proletarização e com isso viabilizou o sucesso do projecto populista, demagógico e regressivo. E tanto assim que a vitória de tal projecto foi muito clara, ultrapassou a fasquia que comigo tinha sido fixada do bastonário que tivera mais votos de apoio na história da profissão.
Para evitar a proletarização da advocacia, teria sido preciso que a Ordem dos Advogados liderasse a reforma da justiça assumindo o movimento incentivado pelo Congresso da Justiça, evitasse a desjudicialização crescente, impedisse o aumento das custas, estivesse na liderança da reforma da acção executiva (por exemplo, em 2004 o meu conselho geral votara o apoio à criação da figura dos advogados agentes de execução), implementasse o novo modelo de apoio judiciário, aumentasse a qualidade e a exigência da formação inicial, tornasse a formação contínua obrigatória, desenvolvesse o programa de especializações que estava em curso, aproveitasse as potencialidades da lei dos actos próprios e exclusivos dos advogados, da nova lei das sociedades de advogados e do novo estatuto (regulamentando-os), continuasse a articulação com as universidades e antecipando Bolonha, apoiasse formas de associativismo de advogados. E, acima de tudo, que continuasse a estar na primeira linha da defesa do Estado de direito e dos direitos de defesa, na luta contra as tentativas de tutela das profissões liberais e na luta contra os abusos da investigação criminal, como desde sempre estivera a Ordem dos Advogados. Numa palavra, que continuasse o trabalho dos anteriores bastonários.
O bastonário seguinte não fez nada disto. Levou a Ordem no sentido diametralmente oposto. Foi apenas um rasteiro aprendiz de Rastignac. Não tive por isso qualquer surpresa com o resultado das eleições da passada semana.
O bastonário futuro é um justicialista. Insulta tudo e todos, sem conta, peso nem medida. Acusou José António Barreiros (que foi eleito com grande votação para presidir ao conselho superior da Ordem dos Advogados) de fazer "piruetas mediáticas", de ter um comportamento que "não é próprio de um advogado" e de não ser "um advogado a sério". Há três anos acusou publicamente João Correia - candidato que se lhe opunha - de viajar para férias à custa da Ordem dos Advogados, apesar de este ter ido representar a nossa Ordem num encontro com a Ordem Brasileira, sem pedir sequer que lhe fosse paga nem a viagem nem a estadia. Acusou as magistraturas como um todo de horríveis defeitos. Acusou as sociedades de advogados de viverem na e da corrupção.
Percebo muito bem que um bastonário frontal e corajoso como Pires de Lima (de quem discordei por vezes, mas sempre admirei) tenha dito que não voltaria a pôr os pés na Ordem enquanto o bastonário futuro por ali andasse, e que só não entregava a sua cédula por precisar de trabalhar. E eu faria o mesmo... se não o tivesse já feito, por causa do bastonário que se me seguiu e do seu conselho superior, de que curiosamente nenhum membro ousou recandidatar-se.
O seu simplificado programa eleitoral funcionou como a última esperança para milhares de advogados que estão em perda de estatuto social, vivendo sem segurança nem perspectivas, confrontados com uma situação desesperante e sem horizontes. Mas zangado com tudo e com todos, tendo vencido pelas piores razões e com os mais censuráveis métodos, incapaz de reunir a classe (nisso seguindo o seu antecessor, que tendo sido eleito com pouco mais de um terço dos votos não chamou nenhum dos que vencera para com eles refazer a tradicional unidade), incompatibilizado com as magistraturas, vai ser obrigado à fuga para a frente, vai ter de criar bodes expiatórios (os juízes, o Governo, os deputados, as sociedades de advogados, se for necessário Bush ou o rei de Espanha, seja lá quem for) e pelo caminho vai dar cabo da profissão.
O bastonário futuro é realmente um Hugo Chávez, como lhe chamou Manuel Magalhães e Silva. Mas não tem petróleo. E isso faz a sua diferença.
Advogado