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quarta-feira, 27 de julho de 2005

Fazer justiça à reforma da justiça administrativa

Não é possível continuar a exigir-se dos juízes a presença de espírito necessária ao exercício exemplar da função de julgar, quando, a um mesmo tempo, se visa transformá-los no bode expiatório de todos os males da justiça, e, mais grave ainda, sobre eles se faz impender um clima generalizado de desconfiança e suspeição

Por Manuel Fernando dos Santos Serra, Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, no Público de hoje
Desde 1 de Janeiro de 2004, vivem-se em Portugal meses de profunda transformação na justiça administrativa. A reforma do contencioso administrativo, que nessa data deu entrada nos nossos tribunais, encontra-se hoje em plena fase de execução e veio, finalmente, concretizar o princípio constitucional de que nenhum direito ou interesse legalmente protegido pode deixar de obter acolhimento junto dos tribunais administrativos e fiscais. Correspondendo às legítimas expectativas dos cidadãos, pelos vigorosos meios que lhes proporciona, a reforma da justiça administrativa cedo se estabeleceu como símbolo de um futuro mais auspicioso para a justiça em Portugal.
Incidindo sobre o principal instrumento de garantia de direitos fundamentais dos cidadãos perante a administração pública, a reforma do contencioso administrativo representa, em toda a sua amplitude e ousadia, um inequívoco salto qualitativo, quer para o sistema judiciário português, quer ainda para o Estado de direito, que da solidez desse sistema depende.
Dotada de 16 novos tribunais de 1ª instância, que cobrem todo o país, de dois tribunais centrais, norte e sul, e de um órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Administrativo, com jurisdição em todo o território nacional, a justiça administrativa é, neste momento, uma justiça próxima dos cidadãos, que, aliás, a ela recorrem cada vez mais.
A instalação de novos tribunais constitui, certamente, o aspecto mais visível da presente reforma, mas esta, de modo algum, neles se esgota.
De igual, se não mesmo de maior importância, reveste-se a adopção de um quadro legal moderno e equilibrado, destinado a garantir uma maior celeridade, simplificação e flexibilidade processual, a par da indispensável igualdade de tratamento das partes, públicas e privadas, em juízo. Em conformidade com este propósito, os cidadãos foram, pelo novo quadro legal, dotados de um verdadeiro direito de acção contra a administração, de um vastíssimo leque de providências cautelares e de um processo eficaz de execução das sentenças.
Mas se nenhuma dúvida resta quanto à bondade de uma reforma, que tão decisivamente veio aumentar as garantias dos cidadãos, convém não escamotear uma verdade tão simples, quanto facilmente esquecida. As leis, por si só, nada fazem, pelo que a promessa que esta reforma encerra será ganha ou perdida, na exacta medida da motivação e efectivo desempenho de todos os agentes judiciários nela envolvidos, com destaque para os que estão investidos na delicada função de administrar a justiça.
Acontece, porém, que não é possível continuar a exigir-se dos juízes a presença de espírito necessária ao exercício exemplar da função de julgar, quando, a um mesmo tempo, se visa transformá-los no bode expiatório de todos os males da justiça, e, mais grave ainda, sobre eles se faz impender um clima generalizado de desconfiança e suspeição.
Assim ocorre com os 83 novos juízes, que foi vital formar, no âmbito da presente reforma, para que hoje tivéssemos um número suficiente de profissionais aptos a administrar justiça nos recém-instalados tribunais administrativos e fiscais.
No momento em que o país atravessa uma grave crise económico-financeira e se mostra necessário multiplicar as medidas de austeridade, é, sem dúvida, tentador encher manchetes com a sugestão de que alguns, designadamente estes juízes, não apenas escapam incólumes à crise, como ainda vêem os seus "privilégios" aumentados, ao fazerem vingar, junto do Ministério da Justiça, a sua pretensão a um aumento salarial da ordem dos 35 por cento.
À primeira vista, tal aumento parece totalmente injustificado. Porém, basta atentarmos na verdade dos factos, para nos apercebermos do quão materialmente justa é a pretensão dos novos juízes dos tribunais administrativos e fiscais. Longe de tentarem obter, por portas travessas, uma benesse governamental, estes juízes pugnam pela simples equiparação dos seus vencimentos aos de todos os outros magistrados judiciais que, encontrando-se na mesma fase da carreira, desempenham funções idênticas. Embora não desperte paixões, nem venda jornais, a sua reivindicação por igual remuneração, em troco de igual trabalho, é perfeitamente transparente e, convenhamos, da mais elementar justiça.
Reivindicação essa que surge tanto mais legitimada quanto mais de perto olhamos, numa ampla perspectiva, para a sua corrente situação. Na verdade, apesar de continuarem a receber o mesmo vencimento que recebiam em fase de estágio, estes juízes exercem funções substancialmente mais exigentes do que as usualmente exercidas por um magistrado judicial em início de carreira. Em realidade, é-lhes requerido o exercício de funções típicas de juiz de círculo, sem que lhes seja, porém, atribuída a remuneração correspondente. Ora, na chamada "jurisdição comum", os juízes dos tribunais de competência especializada são equiparados, para efeitos remuneratórios, a juízes de círculo. Não se descortina, pois, a razão de semelhante medida não contemplar os juízes dos tribunais administrativos e tributários, os quais também exercem funções em tribunais de competência especializada. Acresce que aos novos juízes da jurisdição administrativa e fiscal foi exigida, à partida, não apenas uma licenciatura em Direito, mas também cinco anos de experiência profissional na área do direito público, exigência sem paralelo na dita jurisdição comum. Parece, portanto, razoável que esses cinco anos sejam considerados, no momento de actualizar o seu estatuto remuneratório, de forma a ultrapassar a situação discriminatória em que se encontram.
Os juízes, enquanto titulares de órgãos de soberania, desempenham funções que são essenciais à estabilidade e desenvolvimento do nosso país. É, por isso mesmo, imperioso reconhecer os perigos de desqualificação, se não mesmo de disrupção, em que o sistema de administração da justiça incorre, se a função de julgar não for devidamente dignificada, também em termos remuneratórios. Em vão se tentará reformar a justiça se não se fizer, primeiro, justiça aos seus agentes.
O sentido de responsabilidade, o bom senso e a ponderação, que sempre distinguiram os juízes portugueses, são postos à prova quando as tensões se adensam. Cientes de que a relação da comunidade com a justiça passa, em muito, pela confiança que neles se deposite, em resultado da sua postura e do seu modus operandi, os juízes saberão, estou certo, substituir os seus órgãos representativos à praça pública, para fazer valer as suas legítimas reivindicações. Estas, aliás, só poderão sair reforçadas da exaustão serena da via da mediação e do diálogo.
Assim todos o entendam.

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