Francisco Teixeira da Mota, no Público de hoje
O Abílio tinha 20 anos quando morreu num acidente. A questão que se colocou e que ocupou os tribunais, desde a morte do Abílio no dia 10 de Junho de 1999 até ao dia 19 de Dezembro de 2003, quando foi proferida a decisão final pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi uma só: onde devia "descansar definitivamente" o cadáver do Abílio ?
A mãe do Abílio defendia que o filho devia ser enterrado em Braga. Segundo a mãe, o Abílio tinha vivido sempre em Braga, com os pais até ao divórcio destes em 1988 e só com a mãe a partir dessa data. Era aí que estava a estudar na universidade e era em Braga que viviam não só a mãe, como outros familiares e amigos. Era, ainda, no cemitério de Braga que estava enterrado um outro irmão falecido do Abílio, aí se deslocando diariamente a mãe para prestar culto à memória do mesmo.
O pai do Abílio, pelo seu lado, entendia que o filho devia ser enterrado em Montalegre: era aí que havia um jazigo familiar e o Abílio, há cerca de dois anos, quando da morte do seu irmão Jorge, tinha afirmado aos outros irmãos que, quando morresse, queria ser enterrado em Montalegre no referido jazigo. Sendo certo que o Abílio já havia estado, durante alguns meses, a residir em Montalegre.
A questão colocou-se no dia do próprio enterro: a missa de corpo presente celebrou-se em Braga e só durante o decorrer da mesma a mãe soube que a intenção do pai seria levar o corpo para Montalegre. E, aí mesmo, declarou a sua oposição e recorreu, de imediato, aos tribunais para impedir que o seu filho fosse enterrado em Montalegre. O pai aceitou que, provisoriamente, o filho fosse enterrado em Braga, sem prejuízo de entender que o mesmo devia ser trasladado, posteriormente, para Montalegre. De resto, o outro falecido filho tinha sido enterrado em Coimbra mas a mãe aceitara que, passado um ano, fosse trasladado para Montalegre.
Enterrado o Abílio, provisoriamente, em Braga, o processo continuou a correr pelos tribunais: a mãe pedia ao tribunal que o pai fosse condenado a não efectuar qualquer trasladação do Abílio para qualquer outro cemitério e o pai, em resposta, pedia que a mãe fosse condenada a não se opor ao requerimento de trasladação do cadáver do seu filho para Montalegre, para além de pedir uma indemnização pelos danos morais sofridos com a actuação da mãe.
Na 1.ª instância, o pai do Abílio viu atingido o seu principal objectivo: embora a ex-mulher não fosse condenada a pagar-lhe qualquer indemnização, foi condenada a não se opor à trasladação do corpo do Abílio para o cemitério de Montalegre. O pai, apesar disso, recorreu para o Tribunal da Relação: queria que a mãe fosse condenada a indemnizá-lo. A mãe, pelo seu lado, também não se conformou e também recorreu, mas ambos sem sorte: a Relação confirmou a decisão de 1.ª instância, isto é, o cadáver do Abílio iria para Montalegre e não havia direito a qualquer indemnização. Recorreu, então, a mãe para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
O STJ debruçou-se sobre o notável Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, que estabelece "o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres (...), bem como de alguns desses actos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, (...)", começando, por lembrar, que, nos termos da lei, "o cadáver é - ainda - o corpo humano após a morte e as ossadas são - ainda - o que resta do corpo humano. E o que é ainda o corpo humano, o que é ainda o que resta do corpo humano, não pode ser tratado como uma coisa, embora não seja já uma pessoa."
Ora a lei, estabelece quem são as pessoas com legitimidade para requerer e dispor sobre o "cadáver": em primeiro lugar, o testamenteiro, se houver uma disposição testamentária nessa matéria; em seguida, o cônjuge sobrevivo ou o "unido de facto" sobrevivo; e a partir daí qualquer herdeiro e qualquer familiar. Assim, dado que o Abílio não tinha feito qualquer testamento, a legitimidade da mãe ou do pai era igual: ambos eram herdeiros.
Para o STJ, a vontade do morto, se não constar de testamento, de pouco vale: "... aquilo que quem morre, tenha, num qualquer tempo ou circunstância, dito ou escrito, há-de ser apenas um elemento a ponderar na formação de uma vontade de respeito pela personalidade moral de quem morreu, no exercício de uma legitimidade que já não é de quem morre mas de quem lhe sucedeu".
E, por isso mesmo, o facto de o Abílio ter declarado aos irmãos que gostaria de ser enterrado em Montalegre não era, por si só, motivo determinante na decisão sobre o futuro do cadáver do Abílio. E, para o STJ, o conflito sobre que tinha decidir, era "de algum modo (...) um conflito sem sentido que, perversamente, pretendendo defender a todo o custo essa personalidade (moral do Abílio), ao contrário a atinge inexoravelmente, porque desvia os pais do sentido essencial da memória do filho, concentrando-os numa disputa cujas margens são, a certo ponto, puramente pessoais".
E o STJ lembrou a romancista Lígia Jorge, que escreveu que "a morte não é morrer, a morte é sair da memória", e parafraseou António Lobo Antunes - " a ficção tem um sítio" -, para afirmar que a "memória tem um sítio", isto é, há locais que são "o centro de culto dessa memória...".
Com base nestas verdades literárias e na própria lei, o STJ considerou que, dado que "na nossa cultura a memória tem um sítio", importava face à posição antagónica dos pais, descobrir qual era o local da memória do Abílio e não a dos seus antepassados, aquele local que fosse o mais abrangente possível e que melhor permitisse o culto da sua memória. E, tendo em conta que o Abílio sempre vivera em Braga, que aí viviam a mãe, as avós e a maior parte dos seus amigos, tudo apontava para que a memória do Abílio fosse mais "vivida" em Braga, pelo que o STJ, revogando as anteriores decisões, decidiu que o Abílio não mais sairia de Braga, dando assim razão à mãe.
Já sabe: se quiser ter a certeza que o seu corpo vai ser enterrado no sítio certo, terá de o escrever num testamento!