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domingo, 22 de maio de 2005

Redução das férias judiciais entre a demagogia e o combate à lentidão

Está decidido e o Governo garante não recuar. O período das férias judiciais de Verão será reduzido a metade já no próximo ano, uma medida que agrada à opinião pública, mas que, para as corporações do sector, pode acabar por ter um efeito contrário ao anunciado. Se serve para que os processos andem mais depressa, então por que não se acaba com elas de uma vez por todas?

Por José Augusto Moreira

Depois de José Sócrates ter anunciado, na Assembleia da República, o propósito de reduzir para metade o período de férias judiciais de Verão e de ter feito aprovar em Conselho de Ministros uma proposta nesse sentido, o Governo iniciou já uma série de reuniões com os representantes das classes profissionais envolvidas. Além da exigência legal, esses encontros buscam também um consenso mínimo sobre uma matéria que, apesar de colher a aprovação da opinião pública, pode revelar-se até contrária aos objectivos anunciados.
Apresentada no âmbito de um conjunto de medidas tendentes a combater a crónica morosidade da Justiça e a aliviar os tribunais - o chamado Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais -, a iniciativa do Governo socialista tem sido também vista como mera atitude demagógica, um sinal de "músculo" que o novo chefe do executivo quis deixar ao país logo no primeiro debate parlamentar sobre o programa do Governo, mas de nulo alcance prático. Pior, alguns receiam mesmo que possa acabar por ter um efeito precisamente contrário ao anunciado. "Se a questão das férias judiciais fosse mesmo para levar a sério, não seria pela óbvia falta de diálogo que o poder executivo estaria a comprar uma "guerra" que a magistratura judicial não deseja, mas que vende barata. O pior é que arranjava uma nova via para agravar a morosidade da nossa justiça: por um lado, extinguia os períodos dedicados a alguma recuperação e criava mais 30 dias de funcionamento pleno dos tribunais, com respectivas diligências e litigâncias processuais; por outro lado, mantinha parados os processos que requerem maior atenção e trabalho". Além da incredulidade, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça - e, por inerência, também do Conselho Superior da Magistratura - quis deixar também outro tipo de considerações no seu discurso de posse, que teve lugar poucos dias após a aprovação do programa do Governo. "Face a tantas medidas que já estiveram tantas vezes anunciadas e outras tantas foram goradas, a redução das férias judiciais é pouco, é muito pouco. Se os defensores da solução não vêem nela uma boa dose de populismo e demagogia, não deixarão de reconhecer, pelo menos, que ela parece isolada entre inexplicáveis silêncios sobre tanto por fazer", advertiu o conselheiro Nunes da Cruz.

"Encher os olhos ao povo"
Também o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) já "manifestou as suas reservas e dúvidas quanto à razoabilidade política e viabilidade técnica" da medida, em encontros que manteve com os vários grupos parlamentares, reservas que têm sido igualmente manifestadas por advogados e oficiais de justiça. Num artigo recentemente publicado no semanário Expresso, o advogado Eurico Consciência expressava a opinião de que "não será a redução das férias que resolverá a questão dos atrasos nos tribunais, porque, no que se refere aos juízes que atrasam os processos, tanto faz terem um mês como dois ou três de férias, porque de férias passam eles todo o ano". No encontro das delegações da Ordem dos Advogados, que decorre este fim-de-semana, uma das comunicações apresentadas considera mesmo que "a medida é demagógica e foi apresentada de forma demagógica" e que, apesar de "encher os olhos ao povo", os cidadãos poderão ser mesmo os primeiros a sentirem na pele os seus efeitos. "Correm o risco de, como partes e/ou testemunhas, se verem confrontados com a obrigatoriedade de, em pleno gozo de férias, comparecerem em diligências processuais, sob pena de lhes serem aplicadas pesadas multas, ou então, de serem até detidos para o efeito", advertiu o representante de Vila Franca de Xira, José Pedro Gil.
Para o presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge, "a mudança não vai trazer grande alteração à situação actual". Considerando tratar-se de "uma medida psicológica", defendeu que "os tribunais deveriam funcionar o ano inteiro, tal com o acontece com as empresas ou outros organismos do Estado", podendo assim os funcionários "gozar férias em qualquer altura do ano, de acordo com os seus desejos, e não quando o Governo quer". Também o presidente do SMMP deixa entender que o objectivo de combate à morosidade cede face à teoria do impacte psicológico. O ministro da Justiça tem defendido que a medida pode representar um ganho de 10 por cento em termos de processos findos, invocando estudos (que não divulga) desenvolvidos pelo seu Gabinete de Política Legislativa, mas António Cluny, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, contrapõe: "Se a ideia foi mesmo a de resolver a morosidade, caberá então ao Governo explicar por que não toma uma medida mais aprofundada e acaba com as férias judiciais. Em vez de um ganho de 10 por cento, teríamos 25 por cento". E acrescenta: "Dito da forma como foi, não se compreende, então, como não se põe fim às férias", insiste, chamando a atenção para o facto de o primeiro-ministro ter pretendido deixar nos portugueses a ideia de uma relação directa entre os atrasos no andamento dos processos e as férias judiciais.

"Forma afrontosa"
A avaliar pelas reacções, foi precisamente a forma como a questão foi apresentada que mais incómodo causou entre os juízes. "Profundamente magoada. Profundamente desencantada. E profundamente desalentada." Assim se expressa a magistrada Maria Teresa Mascarenhas Garcia, do Tribunal da Amadora, num texto que subscreve no sítio do sindicato da Internet. Não pelas férias judiciais, mas, "antes, pela forma afrontosa - para não usar a batida "demagógica" - como querem fazer recair sobre os juízes todas as culpas sobre as insuficiências e deficiências do sistema judicial".
Do mesmo modo, o desembargador Afonso Henrique Ferreira, da Relação de Lisboa, regista "a desconfiança - infundada - contra os juízes", assinalando notar-se "nos discursos, quer do primeiro-ministro, quer do ministro da Justiça, que a questão das férias judiciais nada teve a ver com a invocada celeridade processual". Para o ex-secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes, "o que se quis foi, subliminarmente, passar a ideia, para a opinião pública, de que se estava, com tal medida, a pôr na ordem as "corporações" dos magistrados, advogados e funcionários judiciais". E se o objectivo de José Sócrates passava apenas por deixar esse sinal de "músculo", os representantes das corporações entendem que teria sido então mais prudente começar por uma redução de 15 dias. O sinal passava da mesma maneira e assim se evitavam as dificuldades de aplicação prática que advêm da fixação das férias de Verão no mês de Agosto, como é o propósito anunciado pelo Governo.
Por um lado, os tribunais não vão fechar as portas e é necessário continuar a haver turnos de magistrados e funcionários; por outro, há também casos em que o direito a férias (por efeitos de antiguidade ou de assiduidade) se estende para além dos 22 dias úteis, não "cabendo", portanto, dentro do mês de Agosto, como aponta a proposta governamental. Além disso, a lei prevê a atribuição de mais cinco dias úteis de férias a quem optar por gozar a totalidade do período normal fora dos meses de Verão, um direito que, como advertem os juízes, não pode ser negado a qualquer funcionário.

a Frase

"Face a tantas medidas que já estiveram tantas vezes anunciadas e outras tantas foram goradas, a redução das férias judiciais é pouco, é muito pouco. Se os defensores da solução não vêem nela uma boa dose de populismo e demagogia, não deixarão de reconhecer, pelo menos, que ela parece isolada entre inexplicáveis silêncios sobre tanto por fazer."
Nunes da Cruz
presidente do Supremo Tribunal de Justiça


Suspendem-se os prazos mas os tribunais não fecham
Ministro da Justiça prevê um acréscimo de 10 por cento
no número de processos findos

Ao aprovar a proposta para alteração do regime jurídico da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, o Governo deixou claro que a iniciativa "visa diminuir o actual período de férias judiciais de Verão, de cerca de dois meses, para apenas o mês de Agosto, reduzindo, deste modo, o período de férias judiciais anual vigente, que é de cerca de 80 dias". Segundo explicou depois o ministro da Justiça, a redução do período de férias pode significar, em termos anuais, um acréscimo de 10 por cento no número de processos findos, garantindo não que haverá recuos nesta matéria e que as alterações vão entrar em vigor no final do ano, para serem aplicadas já no próximo ano.
No comunicado saído da reunião do Conselho de Ministros, que teve lugar no dia 5 deste mês, é ainda realçado que, com a adopção da medida, se pretende retirar o máximo rendimento dos recursos humanos e materiais actualmente empregues, assim se contribuindo para aumentar a produtividade e a eficiência dos tribunais portugueses e, com isso, a qualidade do serviço que é prestado à população.
A questão, segundo as magistraturas, é que as férias judiciais não correspondem a férias dos magistrados ou dos funcionários, mas a um período de suspensão dos prazos processuais durante o qual os tribunais continuam abertos e em funcionamento, com os juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários a assegurarem o serviço em regime de turnos. Apesar da suspensão de prazos, há também muitos processos aos quais a paragem não se aplica, como são os casos dos que envolvem arguidos presos, os procedimentos cautelares, os processos de insolvência ou para recuperação de empresas, entre outros. Trata-se de um período que terá sido introduzido com o objectivo de proporcionar ao sistema um espaço para regeneração, à semelhança do que acontece com as escolas e as universidades.

Juízes a banhos?
Além de achar "redutora" a expressão "férias judiciais", o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), Nunes da Cruz, compreende que, "para os cidadãos menos atentos, fica a ideia perversa de que os tribunais encerram as portas e os juízes vão todos a banhos. Durante dois meses e sem turnos", acentua. Frisando também as múltiplas situações em que "juízes e funcionários nunca se recusam a trabalhar pela noite dentro, domingos e feriados", o também presidente do Supremo Tribunal de Justiça frisou, no seu recente discurso de posse, que "só um juiz sem apetência para a carreira é que não aproveita o afastamento do tribunal para consultar leis e estudar processos, confrontar doutrinas e reflectir nas aplicações, recuperar atrasos e preparar sentenças ou acórdãos, daqueles casos que atingem dezenas e mais dezenas de volumes".
Face ao anunciado propósito do Governo, o presidente do CSM questiona-se mesmo se "será desta que os magistrados ficam mesmo com um mês de férias estabelecido?". Isto é, um mês inteiro sem interrupções ou turnos, isto além de um "horário normal, horas extraordinárias reconhecidas e tribunais com condições de trabalho". Também o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Cluny, se mostra expectante face às mudanças anunciadas. "Se o sistema tem capacidade para se gerir a si próprio de outra forma", ou seja, sem a paragem processual e articulando os tribunais na sua integralidade, "nós estamos disponíveis para dialogar". Frisando que, "se o Governo lançou a ideia, é porque há-de ter a solução", este magistrado aguarda agora pela realização de uma reunião já agendada com o Ministério da Justiça, para saber se ela é mesmo capaz de contribuir para a desejada melhoria no funcionamento do sistema.

Como é nos outros países?
País Férias Duração
Alemanha Não
Áustria Sim 15 - 25/Jul; 24/Dez - 6/Jan
Bélgica Sim 1/Jul - 31/Ago; Natal e Páscoa (8 a 15 dias)
Bulgária Sim 15/Jul - 31/Ago
Dinamarca Sim 4 semanas no Verão
Espanha Sim Agosto
Finlândia Não
França Sim 8 semanas no Verão; 2 na Páscoa e 2 no Natal
Holanda Não
Inglaterra Sim Ago e Set; 1 semana no Natal e 1 na Páscoa
Itália Sim 18/Ago - 15/Set
Luxemburgo Sim 15/Jul - 15/Set; 1 semana no Natal e 2 na Páscoa
Noruega Sim Verão e Natal (5/6 semanas)
Polónia Não
Rep. Checa Não
Roménia Sim Julho e Agosto
Suécia Não
Suíça Sim Verão (um mês); 1 semana no Natal e outra na Páscoa
Fonte: Estudo da Associação Sindical dos Juízes Portugueses


Oposição apoia alteração, mas é contra a forma como foi apresentada

Anúncio da redução das férias "teve objectivos puramente demagógicos" e acabou por "atingir a dignidade da magistratura", diz o PSD

Os partidos apoiam a intenção de reduzir as férias judiciais, mas criticam a forma como foi apresentada, sobretudo pela associação directa aos atrasos no andamento dos processos. "A medida, em si, pode ter virtualidades, mas foi muito deficiente a forma como foi apresentada, o que só se compreende porque o senhor primeiro-ministro não percebe nada disto. É engenheiro, não sabe." Quem o diz é o deputado do PSD António Montalvão Machado, que é também de opinião que não é pela redução das férias judiciais - "o que não significa férias dos juízes", frisa - que passa a solução para os problemas da justiça.
Quanto a esta medida, "o Governo tomou-a porque entra bem nos ouvidos dos portugueses", mas o deputado entende que a questão da morosidade exige, antes, que se pense na alteração do Código de Processo Civil e em dotar os tribunais de mais e melhores meios. Para o PSD, o anúncio do executivo "teve objectivos puramente demagógicos" e acabou por "atingir a dignidade da magistratura, que não merecia isto". Apesar de entender que a ideia acabou por ficar "debilitada" pela forma como foi apresentada, Montalvão Machado é de opinião de que o Governo a vai levar por diante e manifesta mesmo disponibilidade, por parte do seu partido, para colaborar na busca das melhores soluções para a sua aplicação.
Por parte do Partido Comunista, a sensação é de que "a medida não tem impacte significativo sobre a morosidade da justiça, mas não seremos nós que nos vamos opor à redução das férias judiciais", explicou ao PÚBLICO o deputado António Filipe. "Já foi explicado que o período de férias não significa que as pessoas tenham dois meses de férias", frisa o deputado, para explicar que "esse tempo até é aproveitado para resolver processos mais complexos do ponto de vista jurídico". Quanto aos atrasos nos tribunais, entende que "não há uma única medida de que dependa a morosidade, mas antes iniciativas que poderão ser tomadas conjuntamente", a começar pela crónica escassez de meios humanos e materiais e pelo afastamento do tribunais das questões de menor importância.
Mais optimista é a perspectiva dos socialistas, já que, "se os processos vão estar menos tempo parados, isso parece representar uma ajuda", como conclui Vitalino Canas. "Há que experimentar e avaliar depois", diz ainda o deputado para contrariar as críticas dos que dizem que a medida não terá qualquer efeito no andamento dos processos. "Em Portugal, quando se está contra, inventam-se problemas e contratempos", mas esta é uma experiência que, sendo bem sucedida noutros países, deverá também "ser experimentada em Portugal, sendo que, à partida, reúne todas as condições para ser vantajosa para o sistema".

Ordem considera "aterrador" estado da justiça
Entretanto, o bastonário da Ordem dos Advogados considerou anteontem "aterrador" o estado da justiça em Portugal, lembrando que um estudo da organização mostrou que o número de processos pendentes nos tribunais era superior a um milhão em 2003.
Citado pela agência Lusa, Rogério Alves, que falava na sessão de abertura da V Convenção das delegações da Ordem dos Advogados, afirmou que existem três problemas muito graves que se destacam: a morosidade das acções executivas, as custas dos processos e o acesso ao direito. Segundo dados daquele estudo, em 2003 existiam 1.328.420 processos pendentes nos tribunais judiciais de primeira instância, e só ao nível dos Juízos de Execução de Lisboa, em Março último, estavam por autuar mais de 60 mil acções. Segundo o bastonário, estes números são uma tragédia para o país e mostram a ineficácia do sistema.
Relativamente às custas judiciais, Rogério Alves alertou para os elevados montantes praticados. "Na verdade, a justiça em Portugal é caríssima e o Estado tem de optar: ou é um produto de venda livre que se paga e, portanto, só para os mais ricos, ou é um bem de todos, mesmo dos que têm menos dinheiro", disse. A terceira situação considerada grave refere-se ao apoio judiciário, já que, no nosso país, "é preciso ser-se muito pobrezinho para se aceder ao direito", afirmou Alves.

In Público