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quinta-feira, 19 de maio de 2005

Entrevista de António Cluny à VISÃO

«Há sabotagem do DCIAP»

No momento em que a Justiça está a investigar as ligações perigosas entre o poder e os grupos económicos, o magistrado não poupa críticas ao poder político. Leia aqui a entrevista da VISÃO a António Cluny

Rui Costa Pinto / VISÃO nº 637 19 Mai. 2005

De volta à liderança do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (MP), António Cluny , 49 anos, instalado no seu confortável gabinete, no Tribunal de Contas, não regateia elogios ao DCIAP, a propósito da investigação do caso que envolve o empresário Abel Pinheiro, o ex-ministro do Ambiente, Nobre Guedes, e outros. Assume um discurso contundente em relação à política de justiça dos últimos governos, admite mais transparência no controlo disciplinar dos magistrados e atribui a maior importância ao controlo das escutas e à definição de prioridades.


VISÃO: Freitas do Amaral, numa recente publicação, acusou o legislador de ter divinizado o MP. Está à espera de um ataque?

António Cluny : Não. O MP não é mais valorizado em Portugal do que em Itália, em França ou até nos Estados Unidos da América. Retirar-lhe capacidade de intervenção é acabar com ele.


Tem alertado para a falta de meios do DCIAP...

O procurador-geral da República já disse que o ministro da Justiça está a desenvolver esforços para resolver a situação financeira. Tem de haver dinheiro para um departamento ao qual cabe efectuar investigações complexas, que o próprio Governo considera prioritárias.


O recente caso de alegado tráfico de influência entre empresários e políticos vai obrigar a mais atenção à Justiça?

Por um lado, diz-se que o MP só dá atenção a casos de menor importância. Por outro, verificamos que não há meios no departamento que se dedica aos casos mais complexos. Depois diz-se que vai ser dada prioridade aos processos de maior importância. Mas a realidade contradiz aquilo que se diz que se vai fazer.


É uma contradição inocente?

Infelizmente, até acho que sim. Mas é mais perigoso ser inocente do que não ser.


Mas a inocência dura há muito tempo.

Nos últimos anos, não houve um investimento sério nos meios de investigação. A Assembleia da República devia aprovar uma lei para determinar as prioridades, o que constituiria uma directiva ao Governo para fornecer os meios necessários ao MP e aos órgãos de Polícia Criminal ( OPC’s ) para poderem cumprir os objectivos, no combate a determinado tipo de criminalidade.


É a base do princípio da oportunidade?

Não. É tornar transparenteaquilo que acontece, na prática. As direcções das OPC’s dependem do poder político. E as polícias afectam-lhes os meios quando querem e como querem. O MP não pode ser responsabilizado, enquanto esta situação permanecer.


É uma situação semelhante à que se verifica em relação às escutas e à violação do segredo de Justiça?

Na maior parte dos países europeus, as escutas estão nas sedes das procuradorias ou dos tribunais de Instrução Criminal, sob controlo directo dos magistrados. Em Portugal, as escutas são feitas nas sedes das polícias. Não podemos ser culpados pelas fugas de informação, enquanto não tivermos o controlo directo de todo o material que nos é entregue.


Já transmitiu as críticas ao poder político. Qual tem sido a receptividade?

Os nossos interlocutores não desconhecem a realidade.


Lá está a inocência…

[Risos] Hoje, não há, em nenhum quadrante, a ideia de retirar a autonomia ao MP. A ideia do monstro morreu. Seria interessante que o PGR pudesse fazer um balanço anual, no Parlamento. Era responsabilizante para todos.


Não é essa a ideia do Governo.

O Governo diz que o PGR depende de si e do Presidente da República. No entanto, a Procuradoria faz um relatório anual exaustivo, que é entregue aos órgãos de soberania. Defendo uma comunicação mais bem estruturada entre o MP e a sociedade. É difícil fugir à necessidade de transparência das instituições. É preciso dar uma satisfação à opinião pública. Os cidadãos deviam poder assistir às reuniões do Conselho Superior do MP, que tem de ser mais aberto.


Fala de descorporativização , mas o sindicato não é o expoente do corporativismo do MP?

Não. Como profissionais, não podemos pactuar com situações dúbias. Somos os mais interessados no bom funcionamento do sistema.


As inspecções continuam a ser fechadas?

O sindicato sempre defendeu uma reforma do contencioso disciplinar dos magistrados. A publicidade do processo, tal como existe em França, é uma garantia para o magistrado.


Quando está debaixo de fogo, o MP apresenta trabalho. É uma reacção?

O MP aceita a crítica, tenta corrigir os erros e, apesar da falta de meios, continua a dar a melhor resposta possível. Estamos, por isso, magoados com a forma como o Governo tem apresentado a nossa actuação. A maioria dos magistrados trabalha muito. É desencorajante e perigoso o desrespeito com que o Governo trata as magistraturas. Nunca tinha sucedido.


Nunca os poderosos foram tão postos em causa.

Só podemos investigar aquelas notícias de crimes que existem. Não foi por acaso que se criou o DCIAP. Entre o início do trabalho e a obtenção de resultados, há sempre um intervalo. Apesar de todas as dificuldades, problemas e sabotagens que lhe têm sido feitas.


Sabotagens?

É uma sabotagem prática não preencher integralmente o quadro do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT). Objectivamente, é impedir o funcionamento normal da instituição. Apesar de tudo isto, o DCIAP está a apresentar resultados. Não há quebra de esforço e de empenhamento.


As críticas começaram pelos juízes, por causa da redução das férias judiciais.

As férias judiciais abrangem todos.


Concorda ou não concorda ?

Nem uma coisa nem a outra. As férias judicias são uma paragem técnica, relacionada com a gestão do sistema. As férias judiciais não existem para dar mais ou menos folga aos magistrados. Se o poder político considera que a redução das férias judiciais de dois meses para um mês se traduz num aumento da eficiência, então, o melhor é acabar com todas as férias judiciais. É uma falsa questão tentar imputar aos magistrados um privilégio decorrente da actual situação. Eu prefiro ter um regime igual ao dos funcionários públicos.


Fica a ganhar?

Com certeza. Tudo isto não passa de uma inépcia, na apresentação da proposta ou de uma tentativa de diabolização dos magistrados. Como não há dinheiro para reformas, é preciso encontrar um responsável pela ineficiência do sistema.


O poder político não quer uma Justiça eficiente?

Não tenho essa ideia. O poder tem dificuldade em lidar com uma estrutura que não se rege por critérios de oportunidade política. E os magistrados não têm a percepção da dificuldade do exercício do poder político. É necessária uma reforma da formação dos magistrados.

É preciso dar-lhes experiência vivencial, para poderem compreender a nova complexidade social e económica do País.


Há muito tempo que os governos tomam decisões importantes, durante os períodos em que estão em funções de gestão. Não estranha que o MP só agora avance com uma investigação?

Não podemos dizer que não se faz nada e, ao mesmo tempo, quando se faz, perguntar porque se faz. O DCIAP é acusado de não fazer nada. Agora foi ganhando mais experiência, o que lhe dá um capital de conhecimento acumulado que lhe permite intervir. Se calhar, é por isso que, durante muito tempo, ninguém quis que o DCIAP funcionasse. [# FimNoticia ]