Nada há mais difícil do que apurar a verdade. Ou, para ser exacta, a Verdade, com maiúscula, tal como é entendida na tradição jurídica nacional. Guardiães do processo, os juízes portugueses tendem a pensar que há algo superior, vivendo numa zona etérea a que só eles (e não os advogados, muito menos os jurados) podem ter acesso. Ao negar, na prática, a existência da falibilidade humana, esta ideia tem consequências devastadoras. Ao contrário da concepção anglo-saxónica, baseada na apreciação da prova por jurados, a quem não é pedido que encontrem a Verdade, mas tão-só que determinem se um arguido é culpado "para além da dúvida razoável", em Portugal presume-se que a inteligência humana, materializada no colectivo de juízes, é capaz de chegar à Verdade. Uma vez acusado, compete ao arguido provar a sua inocência. O mundo fica de pernas para o ar.
Como muitos portugueses, tenho acompanhado o julgamento da Casa Pia com interesse e observado com atenção as atitudes dos que me rodeiam. O que me espantou consistiu na facilidade com que, desde logo, me foram oferecidos veredictos, alterados depois sem razão aparente. Pessoas que tinham assinado papéis a declarar que um dos arguidos estava inocente, alguns meses passados começaram a ter dúvidas, sem serem capazes de me explicar, em primeiro lugar, qual o objectivo do abaixo-assinado e, em seguida, a razão que os levara a mudar de opinião. Quando eu declarava que, sem provas, não sabia o que pensar, o seu olhar toldava-se. A maioria dos portugueses julga ter um sensor que lhes permite dizer se um indivíduo cometeu, ou não, um crime.
Aguentei tudo com paciência evangélica. Pelo menos até começar a ouvir as coisas que a provedora da Casa Pia dizia. Após declarar, com um ar que me pareceu perturbadoramente maternal, que os seus meninos, como lhes chama, "não mentiam", Catalina Pestana, comunicou, em Janeiro de 2005, à Assembleia da República saber de pessoas "a lançar nomes [junto das testemunhas] com umas notazinhas de euro à mistura e os miúdos repetem...", tendo agora negado, em tribunal, ter conhecimento de "abusos de adultos em relação a crianças" na Casa Pia, pelo menos desde 1975, ano em que ali ingressara como professora, acabando afinal por confessar que o problema era "estrutural".
A juíza Ana Peres interrogou-a sobre como fora possível passar ao lado de "sinais de prática de coito anal", mas a questão não a assustou. Após citar um documento de 1832, no qual se mencionava a deportação para a Índia de um afilhado do Rei, por ter abusado sexualmente de alunos da Casa Pia, afirmou: "Não posso dizer que agora não aconteça, é tão duro quanto isto". Será que a tutela perfilha a tese da provedora, a qual acrescentou: "Custa-me muito acusar outros por aquilo em que acho que somos todos responsáveis." Todos?!
Para mim, o pior ainda é a iminente entrada em cena de "psicólogos forenses". Posso não estar a par dos últimos desenvolvimentos da disciplina, mas sei que nenhum psicólogo pode afirmar "cientificamente" se alguém - criança ou adulto - está a dizer a verdade. Sou contra a admissão, em qualquer tipo de julgamento, de psicólogos, psicanalistas ou psiquiatras. Choca-me portanto a recente criação de uma "bolsa" de psicólogos junto da Ordem dos Advogados, o que só pode ser atribuível ao desconhecimento que os juristas têm da forma como os psicólogos chegam às suas conclusões.
A arrogância com que estes profissionais afirmam o seu status indicia a sua insegurança científica. Há dias, teve lugar, na Universidade Lusófona, uma reunião destinada a discutir "a avaliação psicológica na âmbito judiciário". O professor José Luís Graña, da Universidade Complutense de Madrid, defendeu que "a avaliação psicológica assenta, principalmente, na metodologia da entrevista cognitiva, com recurso a testes devidamente aferidos e especialmente aplicados à população forense".
Tratar-se-ia de "uma perspectiva cientificamente fundamentada para a avaliação que abrange arguidos, vítimas e testemunhas, especialmente em casos de crianças alegadamente abusadas do ponto de vista sexual". Antes, o prof. Carlos Poiares, coordenador da área de Psicologia Criminal da Lusófona, afirmara: "Só se pode intervir conhecendo os sujeitos e só se deve intervir judicialmente quando, mediante métodos de inequívoco rigor científico [meu sublinhado], se pode explicar aos actores judiciários quem é aquele sujeito, acusado, vítima ou testemunha e o que o motiva." Acrescentava que o trabalho dos psicólogos não se destinava a "julgar" - era o que faltava! -, mas consistia antes na tarefa que "prossegue, exclusivamente, um caminho em que a luz do saber psicológico se projecta sobre as pessoas". A fim de atingir este objectivo, seria necessário "captar as genealogias dos comportamentos humanos, descodificá-las, compreendê-las, explicá-las". Se conseguirem perfurar o jargão notarão que, por detrás das palavras, apenas existe o vácuo.
Não fora o receio que tenho dos novos sacerdotes e poderia considerar irónico que os tradicionais guardiães da Verdade, os juízes, fossem obrigados a enfrentar uma classe reivindicando-se de poderes visionários. Mas, entre psicólogos e juízes, não hesito: a minha confiança vai para os últimos. Entre outras coisas, porque num país, como Portugal, onde o perjúrio é prática corrente, os juízes sabem o que valem os depoimentos. Ao contrário do que sucede nos países protestantes (leia-se, por exemplo, o artigo de Kant On a Supposed Right to Lie from Altruistic Motives), onde a mentira é tida como um acto vergonhoso, nos de tradição católica, onde aquela pode ser apagada pela absolvição, a prática é corrente.
Eu não sei, nem o sabem os psicólogos forenses, quais os adolescentes da Casa Pia que irão dizer a verdade nas próximas sessões do tribunal. Mas sei que a primeira coisa a fazer num processo como este - em que praticamente nada existe para além do verbo - é libertar o juiz de peritos supostamente científicos. Só na solidão do gabinete, reflectindo sobre o que viu e ouviu, poderá ele, ou, neste caso, ela formular uma opinião coerente, verosímil e sensata. Eis o máximo a que podemos aspirar.
Blog de apoio ao CUM GRANO SALIS
sábado, 9 de abril de 2005
Os meninos podem mentir
Por Maria Filomena Mónica, historiadora, Público de 9-4-2005:
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