(Nota brevíssima)
Passo os dedos pelo único exemplar que me restou, na última prateleira da estante, onde arrumo as obras “históricas”. Afasto-lhe o pó, abro-o com cuidado para que mais cadernos se não soltem, como foi acontecendo, uma ou outra vez, ao longo dos anos – a rememória de uma intervenção, uma efeméride.
Não são os gestos da saudade (tento que o não sejam), antes os do respeito: pelo princípio de uma história, pelas vontades dos que, rejeitando a "aventura", não deixavam de se aventurar.
“revista do ministério público”, “ano 1”, “vol 1”, assim mesmo, em minúsculas vermelhas, para dar o sinal da modernidade, numa capa de cartolina branca (?) emoldurada com uma esquadria, onde o arredondar dos cantos deixa a nú a imperícia do gráfico que, cumprindo pena no Estabelecimento Prisional de Lisboa, ali mesmo ao lado do Sindicato, aprendia os segredos da “arte”, à custa da nossa publicação.
Na relativa aspereza do papel, a mancha da página era compacta, feita de linhas a espaço simples e letra miúda, tudo para não se exceder o número de cadernos e reduzir os custos.
As inúmeras gralhas desconsolavam quem (sempre os mesmos). pela noite fora, de prontuário em riste, varejara as provas tipográficas.
Mas a obra ali estava, com textos, uns oferecidos, arrancados outros aos arquivos pessoais dos magistrados à espera das inspecções, como primeira resposta ao que, no editorial, se qualificava como desafio e aposta.
E representava também um estímulo para "valores" que se entendia essenciais para o exercício das funções do Ministério Público: "rigor, imaginação, sensibilidade à dinâmica social e ao efeito que ela produz nas relações e conceitos jurídicos, capacidade dialéctica..."
Conquistada, dois anos antes, a primeira Lei Orgânica, de que mais claramente resultava o estatuto de autonomia do Ministério Público - a Constituição de 76 conferia ao Ministério Público "estatuto próprio" - estava sobretudo em causa a afirmação de uma nova magistratura como órgão de justiça capaz de assumir as responsabilidades acrescidas que a Lei n.º 39/78 lhe atribuía.
Face à violência das críticas e dos ataques ao novo modelo de Ministério Público, a demonstração de competência dos magistrados, ainda há pouco sujeitos a tutelas mais ou menos veladas, constituía para o Sindicato uma das primeiras linhas de resposta e de defesa.
A especificidade da estratégia político-sindical do SMMP, descomprometida, desde sempre, com orientações corporativistas - o que não significava um menor zelo na defesa das melhores condições para o exercício das funções cometidas ao MP - também aqui se manifestava, com a intervenção em domínios tradicionalmente alheios a objectivos sindicais.
A verdade é que, ao longo do tempo em que regularmente se traziam a público novos números, aquela demonstração de competência foi sendo feita, em termos tais que a Revista, largamente ultrapassados os seus objectivos iniciais, passou a ser acolhida pela comunidade jurídica como uma publicação de referência.
À minha frente, 25 anos corridos, tenho agora o n.º 100 da Revista; e nele nada me é estranho, apesar de já não ser áspera a superfície das folhas, compacta a mancha das páginas ou modesto o grafismo da capa.
Ali continuam, das primeiras horas, o entusiasmo, o empenhamento, o desígnio de contribuir para um Ministério Público cada vez mais consciente das responsabilidades que uma sociedade democrática lhe impõe como órgão insubstituível de justiça.
E não é com surpresa que nele vejo também certos avisos a uma navegação que sempre arrostou com porcelas e ventos contrários, soprados por aqueles que do Ministério Público querem uma magistratura submissa, limitada a graus mínimos de intervenção e postergada de áreas ou domínios que pela sua especial vocação lhe seriam próprios.
Se os fins primeiros foram os que se enunciaram no editorial do n.º 1, nunca se terá esquecido que a Revista do Ministério Público constituía uma publicação do Sindicato; e, nesta medida, também nunca lhe poderiam ser estranhas matérias em que o SMMP devia intervir, como, no caso, a do estatuto autonómico do Ministério Público, ainda hoje (e até quando?), por formas necessariamente menos directas mas não menos poderosas, ele continua a ser questionado.
Sem prejuízo da sua abertura ao debate de novas soluções para a Justiça portuguesa e que, em particular, reforcem a legitimidade do Ministério Público, há-de a Revista continuar a defender, aqui sem transigências, o que de mais essencial caracteriza esta magistratura e a identifica numa sociedade democrática.
E é certamente por isto que tudo, na Revista, me parece próximo, 25 anos depois - o fio desta história, que agora passa pelo nº 100, está, afinal, ainda preso ao meu nº1...
Artur Maurício
Fundador da Revista do Ministério Público
Presidente do Tribunal Constitucional
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terça-feira, 12 de abril de 2005
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