Proc. 2139/04-3ª – pleno.
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1. Manuel X, identificado no processo, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão de 3 de Fevereiro de 2004, do tribunal da relação de Lisboa, invocando que se encontra em oposição com o acórdão de 16 de Outubro, da mesma relação, sobre a mesma questão de direito.
No acórdão recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Fevereiro de 2004) considerou-se que o facto de o requerente de apoio judiciário alegar que se encontra preso e não auferir quaisquer rendimentos do trabalho (ou outros), sem que tivesse junto qualquer prova dessa alegada ausência de rendimentos, não fazia presumir que se encontrava em situação de insuficiência económica, nos termos do artigo 20º da Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro; em sentido oposto, o acórdão fundamento (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Outubro de 2002) considerou que do estatuto de recluso decorre uma presunção legal e natural de insuficiência económica e que não deveria ser rejeitado liminarmente o pedido de apoio judiciário em que se alegou essa condição sem que se tivesse junto prova da ausência de rendimentos.
Pede, assim, que, perante a oposição de decisões seja fixada jurisprudência no seguinte sentido: «Do estatuto de recluso decorre, para efeitos da concessão do benefício de apoio judiciário, previsto no Decreto-Lei 387-B/87 de 29 de Dezembro e na Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro, uma presunção natural e legal de insuficiência económica».
2. Reconhecida por acórdão da Secção a existência de oposição de julgados, foi determinado o prosseguimento do processo.
3. Foram apresentadas alegações pelo Ministério Público e pelo recorrente.
A Exmª Procuradora-Geral Adjunta considera ser de acolher a posição do acórdão recorrido, concluindo pelo modo seguinte as suas alegações:
1ª A evolução legislativa, no que respeita às presunções de insuficiência económica, revela que a presunção que veio a constar da alínea c) do n.° l do art. 20.° da Lei n° 30-E/2000 sempre se reportou unicamente à qualidade de trabalhador de quem auferia os rendimentos;
2ª Esta presunção, considerada na evolução legislativa que a consagra, tem como tónica permanente o objectivo de «proteger especialmente ... os cidadãos com baixos rendimentos...»;
3º Na situação de cidadão com rendimentos mensais provenientes do trabalho igual ou inferior ao nível estabelecido por referência ao salário mínimo nacional, os baixos rendimentos são de presumir, na base da regra da experiência de que os trabalhadores que se dedicam a trabalhos a que corresponde esse nível de remuneração têm normalmente baixos rendimentos;
4ª Baixos rendimentos que não são já de presumir relativamente àqueles que se encontram na situação de recluso, pois que podem possuir rendimentos bastantes, provenientes de outras fontes, que não o trabalho;
5ª A conjugação do elemento histórico, no sentido da evolução do regime, e do elemento racional ou teleológico da interpretação, aponta para que a situação de recluso não possa considerar-se integrada na previsão da presunção estabelecida na alínea c) do n° l do art 20.°;
6ª A letra da lei não comporta, nem directa, nem indirectamente, aquela situação de recluso, o que constituiria obstáculo a uma interpretação extensiva;
7ª Elemento de interpretação de ordem sistemática sustenta também o referido sentido de a situação de recluso não integrar a previsão da citada alínea: a lei, quando entendeu dever o recluso beneficiar de especial tratamento em matéria de responsabilidade por custas, disse-o expressamente no art. 522.°, n.° 2, do C.P.P., a propósito da modalidade de dispensa de taxa de justiça nos actos aí previstos;
8ª A interpretação da norma constante da alínea c) do n° l do artigo 20º considerada na sua letra e no seu espírito, não permite incluir na sua previsão a situação de recluso.
9ª A ratio legis, mantida na evolução legislativa, não permite considerar existente uma lacuna relativamente à situação de recluso;
10ª A situação de recluso não integra a presunção prevista na norma do art. 20.°, n.° l, alínea c), da Lei n.0 30-E/2000, de 20 de Dezembro;
Propõe que seja fixada jurisprudência no sentido de que «Para efeitos de concessão de apoio judiciário, a condição de recluso não constitui fundamento da presunção de insuficiência económica a que se refere a alínea c) do n°1 do art. 20° da Lei n° 30-E/2000, de 20 de Dezembro».
O recorrente, por seu lado, termina as alegações, apresentando as seguintes conclusões:
1ª. No Acórdão recorrido (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Fevereiro de 2004) considerou-se que o facto de o requerente de apoio judiciário alegar que se encontra preso e não auferir quaisquer rendimentos do trabalho (ou outros), sem que tivesse junto qualquer prova dessa alegada ausência de rendimentos, não fazia presumir que se encontrava em situação de insuficiência económica, nos termos do artigo 20° da Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro:
2ª. No mesmo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa considerou-se ainda que a rejeição liminar do pedido de apoio judiciário, formulado nesses termos, fora correcta;
3ª. Em sentido oposto, o Acórdão fundamento (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Outubro de 2002) considerou que do estatuto de recluso decorre uma presunção legal e natural de insuficiência económica e que não deveria ser rejeitado liminarmente o pedido de apoio judiciário em que se alegou essa condição sem que se tivesse junto prova da ausência de rendimentos;
4ª. O modelo do apoio judiciário consagrado no Decreto-Lei 387-B/87 de 29 de Dezembro e na Lei 30-E/2000 constitui um corolário da densifícação normativa, operada pelo legislador ordinário, do direito fundamental ao acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa;
5ª. Por isso que, a interpretação das normas legais contidas nesses diplomas tem de respeitar e concretizar o quadro axiológico vertido na Lei Fundamental;
6ª. Nas cinco alíneas do n°l do artigo 20° da Lei 30-E/2000 estão previstas presunções legais de insuficiência económica;
7ª. Presunções são, nos termos do artigo 349° do Código Civil, as ilações que a lei ou o julgador retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido;
8ª. Nas presunções legais verificado o facto previsto na, norma o julgador deve extrair a conclusão ou facto nela estatuída;
9ª. Nas presunções naturais o julgador recorre às regras de experiência comum para do facto que conhece extrair, segundo a lógica, uma consequência ou facto;
10ª. Tanto nas presunções legais como nas presunções naturais o facto presumido não necessita de prova;
11ª. Do estatuto de recluso resultam duas presunções, uma legal e outra natural;
12ª.Sucede que, do facto de se estar preso – facto que o juiz não pode desconhecer –extrai-se, segundo as regras da experiência comum, a inexistência ou a quebra de um vínculo laborai e a inexistência de rendimentos do trabalho superiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional;
13ª.Ou seja, do facto presumido da presunção natural que decorre do estatuto de recluso extrai-se o facto presuntivo constante do artigo 20°, n.° l alínea c), da Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro;
14ª.Na verdade, desse facto, a que se chega através de uma presunção natural, extrai-se a conclusão ou o facto de o arguido se encontrar em situação de insuficiência económica, nos termos da presunção legal estatuída naquela norma;
15ª.Mesmo que assim não se entenda pode-se considerar que do próprio estatuto de recluso decorre uma presunção (natural) de insuficiência económica;
16ª.Note-se que, privado da sua liberdade o arguido não pode trabalhar, auferir um salário ou sequer receber ordens;
17ª.Considerando que não decorre do estatuto de recluso uma presunção legal de insuficiência económica e exigindo a prova desta nos termos gerais estar-se-á a limitar o direito constitucionalmente protegido do acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, de que os arguidos presos também gozam;
18ª.Na verdade, privado da sua liberdade o arguido preso não pode pela lógica das coisas dispor dos documentos que comprovem a sua insuficiência económica;
19ª. Aliás, na maioria dos casos os documentos que poderiam comprovar a insuficiência económica dos arguidos estão apreendidos nos processos em que estão a ser ou foram julgados;
20ª. Face a todo o exposto, dever-se-á considerar que do estatuto de recluso do requerente de apoio judiciário decorre a presunção legal e natural de insuficiência económica devendo por isso ser-lhe concedido aquele apoio judiciário nos termos do artigo 20°, n.° l, alínea c), da Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro e que formulado o pedido de apoio judiciário com fundamento naquele estatuto, sem que se juntem documentos que comprovem a alegada insuficiência económica do requerente, o mesmo não deve, em caso algum, ser rejeitado liminarmente.
O recorrente pede que seja fixada jurisprudência no sentido de que «Do estatuto de recluso decorre, para efeitos da concessão do beneficio de apoio judiciário, previsto no Decreto-Lei 387-B/87 de 29 de Dezembro e na Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro, uma presunção natural e legal de insuficiência económica», e «2 Os pedidos de apoio judiciário formulados com fundamento no estatuto de recluso, sem que com os mesmos sejam juntos documentos que comprovem a alegada insuficiência económica do requerente, não devem ser rejeitados liminarmente».
4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
O acórdão recorrido e o acórdão fundamento, como foi verificado pela Secção, decidiram de modo divergente a mesma questão de direito.
Tal como vem alegado, o acórdão recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Fevereiro de 2004, proferido no recurso nº 10908/03-5ª) decidiu que o facto de o requerente de apoio judiciário alegar que se encontra preso e não auferir quaisquer rendimentos do trabalho (ou outros), sem que tivesse junto qualquer prova dessa alegada ausência de rendimentos, não fazia presumir que se encontrava em situação de insuficiência económica, nos termos do artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30-E/2000 de 20 de Dezembro.
Por seu lado, o acórdão fundamento (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Outubro de 2002, recurso nº 5247/02-3ª), invocando também a norma do artigo 20º, nº 1, alínea c), da referida Lei, considerou que do estatuto de recluso decorre uma presunção legal e natural de insuficiência económica e que não deveria ser rejeitado liminarmente o pedido de apoio judiciário em que se alegou essa condição sem que se tivesse junto prova da ausência de rendimentos.
As decisões transitaram em julgado.
Nos termos do nº 3 do artigo 437º do Código de Processo Penal, os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Verifica-se, assim, que as referidas decisões, proferidas no domínio da mesma legislação, estão em oposição relativamente à questão de saber se, para efeitos de concessão de apoio judiciário, a condição de recluso constitui fundamento da presunção de insuficiência económica a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 20º da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
6. A Constituição garante no artigo 20º, nº 1, como direito fundamental, o direito de aceso aos tribunais.
O direito de acesso aos tribunais tem sido caracterizado como «um direito a uma solução jurídica de conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras» (acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 86/88 de 13 de Abril e 1988, BMJ 376° p. 237 e 444/91 de 20 de Novembro de 1991, BMJ 411° p. 155).
O apoio judiciário, que constitui uma das modalidades de prestação jurídica dispensada pelo Estado, pretende assegurar, na maior dimensão possível, o direito de acesso aos tribunais, evitando que alguém, por insuficiência de meios económicos, deixe de poder fazer valer ou defender nos tribunais os seus direitos ou interesses, de modo efectivo e eficaz e através dos meios judiciários e processuais dispensados.
O apoio judiciário analisa-se, assim, em uma prestação positiva, cuja realização incumbe ao Estado. Mas, como prestação positiva apenas deve ser disponibilizada a quem efectivamente dela necessite, por circunstâncias que lhe não permitem, razoavelmente, suportar os encargos inerentes à utilização dos meios judiciais e processuais em que se concretiza o direito de acesso aos tribunais.
Atenta a sua finalidade e razão de ser, não pode, porém, a avaliação da insuficiência económica do requerente e a decisão da sua concessão ou denegação dispensar a organização de um procedimento prévio de instrução cuja estruturação esteja funcionalizada à averiguação e demonstração da insuficiência económica do requerente.
O regime de apoio judiciário para garantia efectiva do acesso ao direito e aos tribunais resulta, hoje, das alterações introduzidas pela Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, que procedeu a modificações profundas no referido regime, com o propósito de introduzir um maior rigor na concessão de protecção jurídica, passando, nomeadamente, a apreciação da situação de insuficiência económica a ser efectuada de acordo com critérios objectivos que prevê.
7. Os acórdãos em oposição aplicaram, no entanto, o regime decorrente da Lei n° 30-E/2000, de 29 de Dezembro, que, então, regulamentava o apoio judiciário, e que é, assim, aquele sob o qual há-de ser decidido o presente conflito de jurisprudência.
Está em causa a interpretação da norma do art. 20°, n° l, alínea c), da Lei n° 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
O artigo 20º previa situações que constituíam presunções de insuficiência económica para efeitos de concessão de apoio judiciário.
Entre tais situações, a alínea c) do nº 1 dispunha que «goza[va] da presunção de insuficiência económica» «quem tiver rendimentos mensais, provenientes de trabalho, iguais ou inferiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional».
E o nº 2 determinava que «deixa de constituir presunção de insuficiência económica o facto de o requerente fruir, além dos referidos na alínea c) do número anterior, outros rendimentos próprios ou de pessoas a seu cargo que no conjunto ultrapassem montante equivalente ao triplo do salário mínimo nacional».
O estabelecimento de presunções de «insuficiência económica», ou de impossibilidade para «custear as despesas normais do pleito», para efeitos da concessão das prestações de apoio judiciário tinha, como refere a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, tradição no ordenamento legislativo nacional.
O Decreto nº 562/70, de 18 de Novembro, que regulamentou a Lei nº 7/70, de 9 de Junho e desenvolveu o regime jurídico da «assistência judiciária» nos tribunais ordinários, fixou o princípio de que «têm direito à assistência judiciária todos aqueles que se encontrem em situação económica que lhes não permita custear as despesas normais do pleito», e presumia impossibilitados de custear as despesas normais do pleito as categorias de pessoas enunciadas no artigo 8º, alíneas a) e b); filho ‘ilegítimo’ menor para efeitos de investigar a paternidade ou a maternidade, e o requerente de alimentos.
O Decreto-Lei nº 44/77, de 2 de Fevereiro, publicado com o objectivo de «resolver de forma definitiva as dúvidas suscitadas quanto à aplicabilidade aos tribunais de trabalho da legislação que regulamenta o regime da assistência judiciária», mandou aplicar, expressamente, nestes tribunais, o regime definido pela Lei nº 7/70, de 9 de Junho, e pelo Decreto nº 562/70, de 18 de Novembro.
Mas acrescentou ao regime definido por estes diplomas algumas especificidades no estabelecimento de presunções, moldadas pela qualidade das pessoas titulares das relações jurídicas que, pela natureza da matéria, revertiam à competência dos tribunais de trabalho.
Assim, dispunha o artigo 3º do referido Decreto-Lei nº 44/77, de 2 de Fevereiro:
«Presume-se haver insuficiência económica dos trabalhadores por conta de outrem, sempre que estes se encontrem em qualquer das situações seguintes:
a) Reunirem as condições exigidas para a atribuição do subsídio de desemprego, ainda que expirado o período da respectiva concessão;
b) Terem os respectivos contratos de trabalho suspensos nos termos da lei, por força de impedimento prolongado que lhes não seja imputável, desde que a suspensão implique perda de retribuição;
c) Terem rendimentos mensais, provenientes do trabalho e livres de encargos legais, iguais ou inferiores ao montante do salário mínimo nacional».
E acrescentava o artigo 4º que «deixa de constituir presunção de insuficiência económica o facto de o requerente fruir, além [dos rendimentos mensais provenientes de trabalho iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional], de outros rendimentos próprios ou de pessoas a seu cargo que, no conjunto, ultrapassem o valor de 1000000$ anuais».
Na posterior evolução legislativa, o Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro (publicado na sequência da Lei de Autorização nº 41/87, de 23 de Dezembro), correspondendo à consagração, como direito fundamental, do direito de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, que, para ser efectiva, não pode ser condicionada por insuficiência de meios económicos, instituiu um novo regime de «apoio judiciário», que parte do princípio e da ideia-força da atribuição de prestações estaduais adequadas a permitir o acesso aos tribunais a quem não disponha das disponibilidades económicas para suportar os custos da justiça.
Na concretização dos pressupostos para avaliação da situação de insuficiência económica, além da fixação das regras gerais e de normas procedimentais, estabeleceu também, no artigo 20º, nº 1, diversas presunções de insuficiência económica, entre as quais a situação aproximada da que havia sido prevista no artigo 3º, alínea c), do Decreto-Lei nº 44/77, de 2 de Fevereiro: «quem tiver rendimentos mensais, provenientes do trabalho, iguais ou inferiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional» - artigo 20º, nº 1, alínea c), sendo que, nos termos do nº 2, e em formulação próxima do artigo 4º do referido Decreto-Lei nº 44/77, «deixa de constituir presunção de insuficiência económica o facto de o requerente fruir, além [dos rendimentos mensais provenientes do trabalho iguais ou inferiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional], outros rendimentos próprios ou de pessoas a seu cargo que, no conjunto, ultrapassem montante equivalente ao triplo do salário mínimo nacional».
8. A evolução legislativa, continuada com a Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro, sugere, decisivamente, que a norma do seu artigo 20º, nº 1, alínea c), - que, como se referiu, estabelece a presunção de insuficiência económica relativamente a quem possua rendimentos do trabalho inferiores a determinado montante salarial - tem por referência a qualidade de trabalhador, que constitui a base da presunção.
A referida presunção foi, pois, estabelecida sempre a favor de trabalhadores, sendo elemento constante a qualidade de trabalhador.
Perante a assumpção, empírica e própria da realidade das coisas, de que um trabalhador que aufere rendimentos do trabalho abaixo de determinado nível, se apresenta, por força de tal situação, como um cidadão que dispõe de baixos rendimentos, insusceptíveis de lhe permitir um efectivo aceso aos tribunais quando necessite e defender os seus direitos ou interesses protegidos, o legislador criou, para tais casos, uma presunção de insuficiência económica, facilitando a prova dos pressupostos da concessão de apoio judiciário.
A presunção que se refere à qualidade de trabalhador visava, pois na sua génese, especificamente - e esse é um elemento relevante de interpretação - as situações em que poderia estar em causa o efectivo exercício de direitos emergentes de relações de trabalho, e foi estabelecida por um diploma que, directamente, se referia e pretendia regular o regime de «assistência judiciária» nos tribunais de trabalho.
9. As presunções são instrumentos de direito probatório material, constituindo meios ou procedimentos lógicos para prova indirecta, permitindo deduzir um facto desconhecido a partir de um facto conhecido.
A noção de presunção consta do artigo 349° do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Presunção é «a prova por indução ou inferência (prova conjectural) a partir dum facto provado por outra forma». «Chama-se presunção a própria inferência; ou ainda (menos propriamente), o facto que lhe serve de base – facto que mais rigorosamente se designará por base da presunção (Vermutungsbasis)».
As presunções «resultam da experiência (das máximas de experiência), do curso ou andamento natural das coisas, da normalidade dos factos (regra da vida: «quod plerumque accidit), sendo livremente apreciadas pelo juiz» (cfr. BAPTÍSTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 9ª (Reimpressão), Coimbra, 1996, pág. 112/113; MANUEL DE ANDRADE, “Noções Elementares de processo Civil”, I, Nova edição, pág. 200).
«A presunção – prova critica por excelência – define-se como argumentação lógica, desenvolvida pela lei ou pelo juiz, por meio do qual é possível induzir a existência ou o modo de ser de um facto ignorado a partir da ciência sobre um facto conhecido». «O juiz pode decidir com base em presunções simples, que constituem conjecturas, apenas quando for admissível prova testemunhal e quando tenham fundamento em factos que ofereçam elementos sérios, precisos e concordantes», «deixados á prudência do juiz». Observa-se por fim que as presunções simples «não se contam, pesam-se, isto é, o seu significado lógico não depende do número, mas do valor crítico que possa ser atribuído ao conjunto de factos em que se fundam (quae singula non probant coniuncta probant)» (cfr. ALBERTO TRABUCCHI, “Instituzioni di Diritto Civile”, 41ª ed., 2004, pág 212; acórdão do STJ, de 24 de Março de 2004, proc. 4354/03).
As presunções são, pois, ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, tendo por função, como outro meio de prova, a demonstração da realidade de um facto.
Podem resultar da lei, sendo estabelecidas para facilitar a prova de um facto a cargo do sujeito sobre quem impende o ónus da prova, na consideração da especificidade da situação que o legislador entende merecer uma facilidade probatória, ou pela verificação da grande dificuldade que normalmente poderá ocorrer na demonstração do facto presumido.
As presunções legais são, por regra, juris tantum, elidíveis mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a própria lei o proibir; nestes casos expressos na lei a presunção é absoluta, juris et jure – artigo 350º, nº 1 do Código Civil.
As presunções naturais são, por seu lado, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, “Direito Probatório Material”, BMJ, nº 112, pág, 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, “As Presunções na Teoria da Prova”, in “Revista da Faculdade de Direito”, Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
As presunções judiciais (naturais, de hominis) são admitidas como meio de inferência de factos nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal – artigo 351º do Código Civil.
10. Tendo presente o significado das noções, fica bem explícito que a presunção estabelecida no artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro, se integra na categoria das presunções legais: é a lei que faz deduzir de um facto conhecido (ou que, de qualquer modo, é de mais simples e directa demonstração - a qualidade de trabalhador e os seus rendimentos do trabalho), e relativa, ou tantum juris, pois logo a lei não lhe atribui natureza juris et jure, como também define as condições em que a presunção cessa, ou, no rigor das coisas, é elidível.
A presunção legal tem por função facilitar a demonstração do facto presumido.
No estabelecimento de uma presunção legal, o legislador parte das especificidades da situação que constitui a base da presunção, tendo por referência a posição do beneficiário, a natureza do facto a demonstrar (presumido), e a particular relação que intercede entre a necessidade da prova de um facto relevante e o direito ou interesse em esteja em causa; só razões específicas, com objectiva relevância, podem justificar, no plano da lei, a atribuição da vantagem probatória da presunção.
Nos casos em que se suscitem dúvidas sobre a delimitação precisa da base da presunção, a norma que a estabelece tem de ser interpretada com o auxílio dos instrumentos metodológicos de interpretação e dos critérios que a lei inscreve no artigo 9º do Código Civil.
Interpretar uma norma não é mais do que fixar o sentido com que há-de valer, determinando o alcance decisivo da respectiva estatuição.
A letra ou texto da norma é, naturalmente, o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.
Nos limites permitidos pelo texto pode haver, então, que proceder a uma interpretação declarativa, extensiva ou restritiva, ou até correctiva se o texto não tiver sido suficientemente esclarecedor ou permitir mais que uma leitura; a letra é o ponto de partida, mas também é um elemento irremovível da interpretação na procura do sentido com que a norma deve valer, de acordo com critérios de apreensão sistemáticos, históricos, racionais e teleológicos (cfr, v. g., BAPTISTA MACHADO, o. p. cit., pág. 182; OLIVEIRA ASCENSÃO, “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 4ª ed., 1987, pág. 345, ss.).
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexa normativo em que se integra a norma a interpretar, isto e, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões semelhantes (lugares paralelos); compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento geral, assim como a sua concordância com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.
O elemento histórico reverte à consideração dos trabalhos preparatórios, antecedentes legislativos, soluções anteriores e evolução da norma no contexto do regime onde se insere e da matéria que pretende regular.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pela edição da norma, nas soluções que tem em vista e nas finalidades que pretende realizar.
No caso, a letra da lei, primeiro elemento, principio e fim da interpretação, impõe, por si e imediatamente, que os termos usados na norma do artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30_E/2000, de 29 de Dezembro, assumem um significado com um elevado grau de precisão na correspondência entre a designação e a realidade – “quem tiver rendimentos mensais provenientes do trabalho” é, neste sentido, o “trabalhador” (categoria normativa usada na anterior expressão legislativa), ou seja, a pessoa que é titular de uma relação de trabalho, que lhe proporciona determinados rendimentos (salário) como contrapartida da sua prestação laboral.
Este significado, dir-se-ia patente na dimensão normativa, é confortado pela consideração do elemento histórico. Na evolução legislativa de que se deixou nota de síntese, a inscrição da qualidade de trabalhador e do nível dos rendimentos do trabalho, como base da presunção de insuficiência económica para efeitos de concessão de apoio judiciário, surgiu no contexto particular do apoio judiciário (ao tempo «assistência judiciária») nos tribunais de trabalho, para o exercício de direitos nesses tribunais, ou seja, estando em causa, como é próprio da competência específica, questões emergentes de relações de trabalho.
A razão de ser da presunção (rectius, da base da presunção) também se coordena com o sentido emergente da letra e da história.
No âmbito do regime legal do apoio judiciário, as presunções de insuficiência económica destinam-se a facilitar a demonstração do facto presumido, estando cada uma das bases da presunção prevista em função da particular situação objectiva dos beneficiários da presunção, revertendo, porém, sempre a casos que o legislador, vistos os sinais exteriores e a fonte dos rendimentos disponíveis, entende como objectivamente carentes de disponibilidade económica, justificando a dispensa da prova do facto presumido (a insuficiência económica).
Por isso, nesta coordenação de elementos interpretativos, a base da presunção estabelecida no artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro, não se pode afastar de determinada qualidade – “trabalhador” - , qualidade que, no contexto («quem», «rendimentos mensais provenientes do trabalho»), se refere a titular de uma relação de trabalho de que aufere determinados rendimentos inferiores a um nível que o legislador considerou como índice objectivo de insuficiência económica para efeitos de concessão de apoio judiciário.
E, de todo o modo, quando o legislador considerou que a situação de privação de liberdade justificava efeitos próprios no regime de custas, fixou casos de dispensa de taxa de justiça - artigo 522º, nº 2 do Código de Processo Penal.
A situação de recluso, por si, não integra, pois, a base da presunção do artigo 20º, nº 1, alínea c), do Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro.
11. Por outro lado, constituindo uma presunção legal, não há que fazer apelo a referências próprias da noção de presunção natural, que o recorrente faz intervir na construção da fundamentação do recurso.
Com efeito, as presunções naturais não constituem meio de prova adequado a substituir uma presunção legal, nem será racionalmente pensável a existência de presunção de presunção, em que a base da presunção legal, objectiva e determinada, fosse demonstrável apenas através da intervenção das regras da experiência que constituem o fundamento das presunções naturais.
Neste aspecto, a hipótese de demonstração andaria em círculo vicioso. Tal como vem suscitada e decidida divergentemente, a questão não estará nas consequências que no plano da normalidade das coisas resultarão, em termos de disponibilidades económicas, da contingência da privação de liberdade (plano em que as regras da experiência podem intervir para permitir, autonomamente, inferências na demonstração de insuficiência económica), mas antes, em nível inteiramente distinto, em decidir se a situação de recluso permite a equiparação a «quem» tem «rendimentos do trabalho» inferiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional.
Mas, vistas finalmente assim as coisas, a extensão da base da presunção legal do artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro, não é permitida pelo sentido que resulta das regras da interpretação, nem por si só (o que, de qualquer modo é questão diversa), a situação de privação de liberdade permite concluir, sem o auxílio de outros meios de prova - o que retiraria a demonstração do âmbito da presunção - , pela insuficiência económica.
12. Nestes termos, confirmando o acórdão recorrido, fixa-se a seguinte jurisprudência:
«Para efeitos de concessão de apoio judiciário, a condição de recluso não integra a base da presunção de insuficiência económica a que se refere o artigo 20º, nº 1, alínea c), da Lei nº 30-E/2000, de 29 de Dezembro».
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quarta-feira, 13 de abril de 2005
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