A ética é tão necessária na vida nas estradas quanto em outras relações sociais.
A explicação das mortes na estrada por acidente deixou de fazer sentido. O acidente tem vindo a ser assumido como crime rodoviário. A sociedade, que encarava o acidente como fatalidade, deixou de o aceitar como desfecho plausível de uma vida.
Procuramos obsessivamente causas e culpas, mesmo quando se trata apenas da imperfeição humana para lidar com o elevado risco da condução automóvel. Ora, a primeira causa do acidente é, sem dúvida, o preço desse risco.
A diminuição da circulação automóvel, a promoção de alternativas céleres, confortáveis e económicas; a selecção rigorosa dos titulares de licença de condução e a tolerância zero quanto ao álcool, ao excesso de velocidade e às manobras perigosas implicariam modificações drásticas de hábitos de vida.
Além disso, tais medidas não teriam sucesso político garantido. A máxima expressão da liberdade é, para muitas pessoas, o seu automóvel. É aí que encontram o seu pequeno espaço de vida própria e igualitária.
Na estrada vive-se em risco permanente e sem os entraves culturais das auto-estradas informáticas. Vive-se num espaço em que é possível violar regras sem ninguém ver, o que favorece a autodesculpa. A agressividade primitiva explode nesse mundo da estrada.
É então que se transpõe a fronteira do acidente e começa o crime. Os comportamentos negligentes revelam a incapacidade para um agir responsável e devem ser punidos com sanções eficazes. Multas elevadas, inibições de conduzir e trabalho a favor da comunidade encontram-se entre as mais adequadas.
Mas é verdade que certas situações de excesso de velocidade, álcool ou condução perigosa extravasam a mera negligência e se aproximam da conduta dolosa. Esses comportamentos revelam indiferença, temeridade e aceitação de riscos enormes para os outros.
Cabe à lei e aos tribunais filtrarem os casos mais graves, avaliando a gravidade do facto e o grau de culpa. Uma punição mais severa do excesso de álcool e a criação de um crime de perigo por excesso de velocidade a partir de certa medida, como já acontece em Espanha, podem justificar-se.
Seja como for, só conseguiremos inibir os comportamentos perigosos quando a censura social for tão forte quanto a que subjaz, já hoje, à corrupção. A ética é tão necessária na vida nas estradas quanto em outras relações sociais. Só ela impedirá que, sob a máscara do acidente, prevaleça a lei do mais forte.
Como diz Cormac McCarthy em ‘A Estrada’, será preciso compreender que o nosso mundo próprio – sem chefes nem hierarquias – é, por inteiro, o mundo dos outros. A circulação rodoviária é um mundo em que esta afirmação faz todo o sentido.
Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal, in Correio da Manhã de 6/Jan/2007
A explicação das mortes na estrada por acidente deixou de fazer sentido. O acidente tem vindo a ser assumido como crime rodoviário. A sociedade, que encarava o acidente como fatalidade, deixou de o aceitar como desfecho plausível de uma vida.
Procuramos obsessivamente causas e culpas, mesmo quando se trata apenas da imperfeição humana para lidar com o elevado risco da condução automóvel. Ora, a primeira causa do acidente é, sem dúvida, o preço desse risco.
A diminuição da circulação automóvel, a promoção de alternativas céleres, confortáveis e económicas; a selecção rigorosa dos titulares de licença de condução e a tolerância zero quanto ao álcool, ao excesso de velocidade e às manobras perigosas implicariam modificações drásticas de hábitos de vida.
Além disso, tais medidas não teriam sucesso político garantido. A máxima expressão da liberdade é, para muitas pessoas, o seu automóvel. É aí que encontram o seu pequeno espaço de vida própria e igualitária.
Na estrada vive-se em risco permanente e sem os entraves culturais das auto-estradas informáticas. Vive-se num espaço em que é possível violar regras sem ninguém ver, o que favorece a autodesculpa. A agressividade primitiva explode nesse mundo da estrada.
É então que se transpõe a fronteira do acidente e começa o crime. Os comportamentos negligentes revelam a incapacidade para um agir responsável e devem ser punidos com sanções eficazes. Multas elevadas, inibições de conduzir e trabalho a favor da comunidade encontram-se entre as mais adequadas.
Mas é verdade que certas situações de excesso de velocidade, álcool ou condução perigosa extravasam a mera negligência e se aproximam da conduta dolosa. Esses comportamentos revelam indiferença, temeridade e aceitação de riscos enormes para os outros.
Cabe à lei e aos tribunais filtrarem os casos mais graves, avaliando a gravidade do facto e o grau de culpa. Uma punição mais severa do excesso de álcool e a criação de um crime de perigo por excesso de velocidade a partir de certa medida, como já acontece em Espanha, podem justificar-se.
Seja como for, só conseguiremos inibir os comportamentos perigosos quando a censura social for tão forte quanto a que subjaz, já hoje, à corrupção. A ética é tão necessária na vida nas estradas quanto em outras relações sociais. Só ela impedirá que, sob a máscara do acidente, prevaleça a lei do mais forte.
Como diz Cormac McCarthy em ‘A Estrada’, será preciso compreender que o nosso mundo próprio – sem chefes nem hierarquias – é, por inteiro, o mundo dos outros. A circulação rodoviária é um mundo em que esta afirmação faz todo o sentido.
Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal, in Correio da Manhã de 6/Jan/2007