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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

As noites brancas de Inverno

Por José Miguel Júdice, no Público

Não aceito que a investigação criminal esteja à mercê de rivalidades entre a PJ e a Procuradoria-Geral da República

As noites brancas de S. Petersburgo são mundialmente famosas. Por alturas do solstício de Verão, a luz do Sol praticamente não deixa de ser vista durante as 24 horas do dia. S. Petersburgo é também famosa pelas suas máfias, segundo consta. Foram estas as imagens que se me suscitaram quando tomei conhecimento pelos media da operação policial realizada no Porto com grande aparato e a que foi dado o nome de Noites Brancas, apesar de se realizar pela altura do solstício de Inverno.
Se a PJ conseguiu desmantelar com tanta facilidade os gangs (é assim que os media se lhes referem) que controlam a segurança da noite do Porto e que serão responsáveis por seis mortes violentas em menos de seis meses, trágicos factos que são incomuns em Portugal, devemos sentir-nos muito seguros: por um lado pela enorme eficácia das polícias e, por outro, pela surpreendente incompetência dos gangs.
Se admitirmos que assim é - e não só não custa, como também dá gosto acreditar nisso -, este texto deve acabar de imediato, com algumas palavras de felicitações e com os amáveis leitores a sentirem-se de imediato invadidos pelo espírito natalício.
Mas a mente humana tem destas coisas, não sou capaz de evitar deixar-me pelo contrário invadir por algumas dúvidas e preocupações. Tentei resistir, lembrei-me da bondade ínsita na natureza humana, enchi-me de boa vontade para ter a paz prometida na terra, contrariei os meus instintos de advogado. Não fui capaz. O artigo tem pois de continuar. Peço que os homens de boa vontade me perdoem.
Em primeiro lugar, as facilidades. Então uma operação que estava a ser preparada há tanto tempo, que implicou negociações dentro da PJ por causa da luta sindical em curso, que teve de mobilizar voluntários de todo o país às centenas, fez-se sem uma indiscrição?
Admitamos que sim, apesar de a luta contra o tráfico de droga não conseguir tal proeza. Mas, então, tanta gente soube e o único que não foi informado foi o procurador-geral da República? Se tivesse sido informado, não teria adiado (ou antecipado) por dois ou três dias a nomeação do procurador especial? Admitamos ainda que o titular da acção penal, o supremo responsável pela direcção da investigação criminal, não sabia porque não tinha de saber. Mas, então, qual a razão pela qual esta operação de tanto sucesso não foi feita uns tempos antes, evitando-se desse modo que fossem mortas mais pessoas e que entre os mortos estivesse, segundo dizem os media, um cidadão que sabia quem tinha morto outros por ter assistido ao seu assassinato?
Admitamos que só agora se chegou a um grau de investigação tal que antes teria sido inviável obter estes resultados. Admitamos mesmo que isto aconteceu, apesar de os media terem sido informados de quem tinha sido morto por engano ou sem engano. Mas, então, qual a razão de uma tão longa e detalhada investigação não ter sido partilhada com o procurador-geral da República?
Por estas e por outras, o meu espírito está muito pouco natalício. Sobretudo também porque estou ainda em estado de choque, por notícias não desmentidas, de que procuradores da República do Porto se recusaram a integrar a equipa da procuradora especial nomeada para o caso e, horror dos horrores, tendo vindo de Lisboa. E por comunicados da associação sindical da PJ, no qual o titular da acção penal e o supremo responsável pela direcção da investigação criminal são atacados de forma radical.
De facto, mesmo que possa admitir tudo o que me custa a aceitar, há algo que não consigo engolir, até porque há anos venho lutando contra isso. Não aceito que a investigação criminal esteja à mercê de rivalidades entre a PJ e a PGR (não teria sido uma boa ideia que para colher os louros da operação "noites brancas" estivessem juntos o director nacional da PJ e o PGR?) e das lutas feudais entre barões, condes e marqueses, como afirmou o conselheiro Pinto Monteiro e estes acontecimentos revelam. Como o revela o sintomático facto de ter sido a sensatez do presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público - e não a cadeia hierárquica - a repor a ordem e, afinal, a legalidade.
Não consigo, por tudo isto, evitar que o meu espírito perverso me leve para outros lados. Não consigo evitar admitir que esta aceleração da investigação criminal no Porto teve a ver com a luta interna na magistratura em questão e entre esta e a PJ. Nesse sentido chamo à colação o facto de ter sido tão bem preparada com os media, que, curiosamente, todos souberam instantaneamente dela e todos deram as mesmas notícias e revelaram os mesmos factos que deveriam estar em segredo de justiça.
Por isso, não consigo evitar admitir que a precipitação das acções espectaculares possa ter prejudicado a investigação em vez de a ter terminado, que deter presumíveis criminosos é mais fácil do que investigá-los e, mantendo-os em liberdade, ir coligindo indícios e provas.
Posso estar enganado. Desejo estar enganado. É verdade, já me estava a esquecer, os dirigentes da UGT, ao fim de 20 anos, com as vidas profissionais destruídas, foram absolvidos por nada se ter provado contra eles. O meu respeito perante eles e a confirmação de que a presunção de inocência é um valor. O processo Casa Pia, esse, continua. Com presumidos inocentes também. Boas festas para todos!
Advogado