A confiança dos cidadãos nas suas instituições tem de ser ganha, pois, e primeiramente, pela acção quotidiana: as instituições serão muito o que forem os agentes que nelas servem, e que pelo seu rigor, competência, disponibilidade e serviço exprimem e revelam a sua legitimidade.
É assim acrescidamente nas intituições judiciárias.
A Justiça, na dimensão complexa onde se acolhem o sistema de administração da justiça e as suas instituições, mas também os valores e a própria ideia comummente sentida de Justiça, tem estado sob a tensão do discurso adensado da crise.
A crise, ou com maior rigor analítico que descole de pré-compreensões acríticas, o discurso da crise - recorrente, impressionista e nascido de fragmentos ocasionais - produz uma devastadora afectação da confiança.
A confiança constitui, porém, um valor essencial na relação dos cidadãos com as instituições, e contribui decisivamente para a garantia fundamental do Estado de direito.
Sem a percepção sobre a prestação fiável e rigorosa e sobre a integridade funcional das suas instituições, o Estado de direito fragiliza-se e, com a sua fragilidade, cresce exponencialmente a insegurança e encurta-se a cidadania.
A confiança, contudo, não se apresenta como valor imediatamente racionalizável; não sendo inteiramente da razão, mas muito do sentimento, é volátil pela erosão do discurso da crise, ou, em linguagem mais crua, pelo excesso intensivo e extensivo do discurso da crise. A confiança dos cidadãos nas suas instituições de justiça e particularmente nos seus tribunais constitui o mais relevante dos instrumentos imateriais de consolidação do Estado de direito. É, pois, urgente que o discurso da crise seja recentrado na sua verdadeira dimensão, para que se não potenciem, por artifícios retóricos ou disfuncionalidades analíticas, os riscos que ameaçam a solidez das instituições do Estado na administração da justiça. É imperioso que se restitua a confiança aos cidadãos, logo porque não existem motivos racionais para a crise de confiança.
Mas, sendo a confiança sentimento e valor imaterial da ordem das percepções não imediatemente racionalizáveis, a restituição da confiança exige o empenhamento total de todos quantos detenham responsabilidades, sejam de acção funcional no interior da instituição, sejam de cidadania pela projecção exterior do discurso.
A confiança dos cidadãos nas suas instituições tem de ser ganha, pois, e primeiramente, pela acção quotidiana: as instituições serão muito o que forem os agentes que nelas servem, e que pelo seu rigor, competência, disponibilidade e serviço exprimem e revelam a sua legitimidade.
É assim acrescidamente nas intituições judiciárias.
Nos contextos de crise de confiança, não basta aos servidores da justiça ser competentes e rigorosos na actuação com elevado espírito de serviço; têm de ser também vigilantes e preventivos quanto a comportamentos, actos ou decisões não facilmente comprensíveis, e que, mesmo quando isolados, constituem factores fracturantes da confiança.
Um só acto ou decisão, mesmo isolado, que corte o sentimento comunitário de justiça, produz pela amplificação generalizante uma grave fractura na relação de confiança dos cidadãos. Impõe-se, por isso, para além do cuidado preventivo, a existência de um espaço de informação sobre as potencialidades que o sistema contém na reponderação das decisões; o regime de recursos permite, por exemplo, a reconstituição de garantias e uma segunda discussão de situações porventura criticas.
A tarefa complexa para repor os níveis de confiança há-de contemplar, igualmente, formas de comunicação que permitam a lisibilidade e a compreensão de actos e decisões. O estabelecimento de formas institucionais, constitucionalmente possíveis e adequadas, através das quais o sistema de justiça, enquanto macro-sistema, possa dar conta sobre o modo como se desempenha das suas responsabilidades (accountability) poderá constituir, também, um factor de reforço da confiança.
Mas o dever e a reponsabilidade de contribuir para repor e reforçar os níveis de confiança não podem estar limitados ao interior da instituição judiciária.
Há outras responsabilidades que têm de ser exercidas. Desde logo dos responsáveis políticos. O discurso dos responsáveis políticos deve ser, nesta perspectiva, fundamental. Tem de ser um discurso sustentado, que parta do reconhecimento da capacidade efectiva que o sistema tem, em geral, para responder às exigências cidadãs, sem concessões à fragmentaridade do avulso ou à tentação de generalizar disfunções localizadas.
As fórmulas e a linguagem de apresentação pública de uma ou outra intenção ou programa podem, quando menos atentas e cuidadas e independentemente do rigor do conteúdo, revelar-se fatais na perspectiva do sentimento de confiança. Mesmo no discurso político, o que parece é. Mas igualmente em posição não institucional se exigem responsabilidades de cidadania.
No plano das percepções simbólicas que suportam o discurso da opinião, a crise tem sido construída sobretudo a partir do dogma da morosidade e da generalização totalitária de avulsos problemas ou como tal considerados.
Semelhante abordagem, tornada politicamente correcta, não corresponde, porém, à realidade, mas pela projecção comunitária dos que produzem opinião transmuta-se em verdade nas representações sociais.
Constitui dever e indeclinável responsabilidade de cidadania produzir opinião ou transmitir informação que seja formada a partir de pressupostos objectivos, e não de leituras ou percepções subjectivas nascidas de informação toldada pela natureza fragmentária dos elementos.
Neste aspecto, por muito que custe a ideias feitas, a Justiça portuguesa, tanto quanto revelam as projecções estatísticas, não apresenta problemas sérios de morosidade (ou, pelo menos, não difere de outros sistemas que nos são próximos), e contém em si, pela intervenção dos mecanismos de garantia de que o sistema dispõe, formas para superar problemas de acção ou deficiências de actuação.
Problemas de morosidade existentes não são sistémicos, mas localizados e identificados, e, de todo o modo, a ponderação exigida e a qualidade da justiça não são, por regra, compatíveis com soluções sumárias de tempo imediato.
A generalização e a construção arbitrária do todo a partir da observação de dificuldades pontuais ou de algum erro de actuação, não é legítima, e pela perturbação da confiança que potencia não está ao nível das exigências de acrescida reponsabilidade de cidadania de todos quantos se investiram no poder de formar opinião.
A Justiça necessita de confiança para poder garantir confiança. A reconstrução da confiança na Justiça como factor determinante da efectividade do Estado de direito é urgente e deve ser tarefa de todos, dentro e fora do sistema, na identificação das dificuldades para que sejam superadas, mas também no discurso positivo, que a integridade do sistema e a sua geral capacidade de resposta merece, mesmo nos domínios mais simbólicos, sem a leveza das generalizações não sustentadas e, por isso, abusivas.
Porque - não é demais sublinhá-lo - os deveres e as responsabilidades de todos constituem aqui questões centrais de cidadania.
Blog de apoio ao CUM GRANO SALIS
segunda-feira, 20 de junho de 2005
Justiça, a crise e a confiança
Pelo Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, António Henriques Gaspar, hoje, no Público: