Blog de apoio ao CUM GRANO SALIS

terça-feira, 6 de setembro de 2005

«Estamos num momento-limite de subsistência do regime»

A entrevista de António Cluny ao Independente de 2-9-2005

Entrevista - Adriana Vale
Fotografia - Rui Dias


Os magistrados prometeram guerra para Setembro. Já chegámos a Setembro. Vai haver guerra?
Estão a ser estudadas algumas formas de luta mas não posso ainda divulgar quais são. Mas certamente vai haver formas de manifestação de descontentamento dos magistrados e não só, dos funcionários e de outros sectores do Ministério da Justiça, que efectivamente estão desagradados com a política social do Governo.

Quando se refere a política social está a falar concretamente nos serviços sociais do Ministério da Justiça ou à política social em termos gerais?
Todo o tipo de medidas que o actual Governo vem tomando vão no sentido de afectar direitos sociais dos trabalhadores da Administração Pública e, por essa via, de colocar um “plafond”, um patamar às reivindicações e aos direitos dos trabalhadores do sector privado. Nós estamos numa primeira linha que servirá como definidora do que pode vir a ser uma política social para os trabalhadores em geral. Todos nós estaríamos disponíveis para rediscutir este conjunto de contrapartidas e a criação de uma segurança social e de uma assistência médica ou medicamentosa correcta. Só que este não foi o programa que o Governo apresentou aos eleitores...

O Governo não está a cumprir?
Não apresentaram esse programa e não o tendo apresentado creio que é uma situação complicada do ponto de vista da legitimidade político-moral. A professora Fátima Bonifácio explica a perplexidade em que se encontram muitas pessoas que, até tendo votado neste Governo, se sentem, nesta altura, profundamente enganadas porque não sabiam nem nunca souberam que este era o objectivo do Governo. Ninguém sabe quais as razões em que esta política se funda e qual o caminho que aponta. Fala-se na sustentabilidade da segurança
social, mas o que queríamos saber é de que modelo de segurança social. Esse modelo não é discutido. Dá ideia que se esteve à espera da questão do défice, ou de outro pretexto qualquer, para impor, de surpresa, um programa que aponta para um modelo neoliberal, meramente assistencial e que nesse sentido não foi discutido nem apresentado como um projecto que os portugueses tivessem sufragado. Percebemos já que é uma limitação ao mínimo existente o que no nosso país é muito débil. Não é um regime justo, eficaz e capaz de dar respostas. Coloca as pessoas, antes abrangidas por outros sistemas, na obrigação de se socorrerem de programas privados de apoio, para os quais, muitas vezes, já nem têm idade. Além de ser uma esonestidade
intelectual e política grande é também de uma injustiça e de uma imoralidade social.

Este é um governo de esquerda...
Não sei se isto será mera coincidência, mas vamos assistindo à redução dos direitos sociais e vamos todos lendo nos jornais que alguns dirigentes do PS, alguns empresários, vão entretanto investir em sectores de saúde para abranger essas áreas sociais.

O Governo prepara severos cortes orçamentais para o ano que vem. Os tribunais vão sobreviver a estes cortes?
Os tribunais têm estado a funcionar num “plafond” mínimo de necessidades. O Governo prometeu desenvolver uma série de programas: informatização, desmaterialização dos processos... Não sei em que medida é que um corte dessa natureza irá ou não afectar todos esses programas que são importantes mas instrumentais para a reforma da Justiça. Tão útil como a informatização, é ter programas coerentes, aquisição e actualização dos equipamentos informáticos. Há falta de dinheiro para traduções, especialistas e muitas comarcas onde nem sequer há magistrados do Ministério Público, há representantes não magistrados. Partindo do princípio que uma das prioridades deste governo era melhorar o acesso à Justiça e ao Direito, a questão torna-se mais complexa.

De que forma?
Uma melhoria do acesso ao direito implica repensar todos os mecanismos existentes, nomeadamente o modelo de assistência judiciária que temos, que é oneroso e não é eficiente. E se calhar implicaria, em conjunto com a advocacia, colocar, de uma vez por todas, a questão se é ou não é possível manter um sistema destes em que a assistência judiciária acaba por transformar-se mais numa assistência à advocacia desempregada do que uma assistência aos cidadãos. Essas eram as questões que devíamos estar a discutir neste momento e para as quais todos nós tínhamos esperança que o ministro da Justiça actual – um dos governantes que tem uma cultura superior à média, muito bem preparado e com um pensamento estruturado sobre a acção da Justiça – nos pudesse estar a ajudar a resolver. E acabamos por estar enredados em políticas...

O ministro da Justiça está de mãos atadas?
Tenho ideia que não lhe está a ser permitido desenvolver um programa, que é o programa do Governo, que qualificamos como um bom programa. E não deixa porque optou por uma política económica e financeira, que é contrária e impeditiva dos objectivos programados.

A título mais pessoal e de cidadania ainda se revê como alguém que é de esquerda?
Tenho muitos amigos que dizem que com uma esquerda destas não é preciso a direita para coisa nenhuma. Eu não sou assim tão radical. Sinto-me por vezes como o Nanni Moretti naquele filme. Quando algum dirigente fala na televisão, na expectativa afirma: diz, diz qualquer coisa de esquerda...” (é mais ou menos assim a frase de Nanni Moreti) e termina a afirmar: “Diz qualquer coisa.”A minha desilusão já vai aí, pedia que dissessem qualquer coisa. O problema já não está em esperar que o Governo faça qualquer coisa de esquerda, mas que o Governo faça ou diga qualquer coisa que seja capaz de orientar os destinos do país, perante uma situação grave que de facto existe.

E nas presidenciais, apoia Mário Soares?
Enquanto cidadão sempre fui uma pessoa de esquerda. A minha inclinação irá para o apoio à candidatura do dr. Mário Soares. Mas faço-o na medida em que estou convencido que é a única pessoa que, na área da esquerda, é capaz de dar um rumo diferente à política deste país. Pode voltar a dar alguma esperança a pessoas que se revêem na esquerda. Quanto ao prof. Cavaco Silva, se lhe reconheço uma enorme competência e capacidade intelectual – estou até convencido que se fosse primeiro-ministro seria capaz de praticar a actual política de uma forma mais coerente e rigorosa –, a verdade é que o situo numa linha de continuidade desta política. Estamos, como disse Paulo Varela Gomes, num momento-limite de subsistência do regime. Há muito pouca margem de manobra para que este regime continue a poder existir da forma como existe.

Estamos à beira de um golpe de Estado?
Quando digo isto não quero dizer que estejamos à beira de um golpe de Estado. É impossível, embora haja, pela primeira vez neste país, um fenómeno muito preocupante do ponto de vista democrático: é a primeira vez que se nota uma insatisfação muito grande nas forças armadas, um dos pilares de soberania do Estado. Felizmente os dirigentes associativos das forças armadas são pessoas com uma cultura democrática efectiva. Estava a referir-me, antes, ao facto de um grupo grande de portugueses começar a desinteressar-se efectivamente da política e divorciar-se do sistema.

Não poderá haver alguma controvérsia sindical ao assumir assim tão claramente as suas opções políticas?
O sindicato não é um partido e o Ministério Público também não. São organismo pluralistas e quando me elegeram já conheciam as minhas posições pessoais.

Como estamos perto das autárquicas põe-se a velha questão dos candidatos alegadamente envolvidos em investigações criminais.
Há que alterar legislação e resolver a questão muito claramente. Quem tem processos pendentes por questões relacionadas com o exercício de funções públicas não deverá poder candidatar-se. Poderá ser muito duro para algumas personalidades que até provem, eventualmente, ser inocentes. Mas seria uma contrapartida de transparência para o sistema.

Só a nível autárquico?
A nível político geral. É claro que há um risco muito grande nestas situações que é o da existência de denúncias falsas. Ainda no tempo do ministro Laborinho Lúcio foi criada a figura do pré-inquérito. Agora tem outro nome, averiguações prévias, mas essas averiguações também têm de ser controladas do ponto de vista dos seus “timings” e dos métodos com que são desenvolvidas.

É possível encontrar uma forma de controlar as averiguações?
Essa é uma questão que tem de ser muito bem trabalhada porque tem permitido, ao que consta, alguns abusos. De qualquer forma, há métodos que podem permitir detectar imediatamente da razoabilidade de algumas denúncias, embora haja que reconhecer que estamos sempre numa área de risco, onde podem montar-se armadilhas muito bem estruturadas. Até hoje isso está nas mãos da Polícia Judiciária. O controlo que o Ministério Público faz dessas averiguações é meramente formal e numérico e eu penso que não devia ser.

Deveria ter um papel mais interventivo?
Completamente. Porque se o inquérito já é um processo formal, com garantias e impõe a presença do controlo do Ministério Público, a existência de averiguações prévias, que não são processo, não têm garantias e não são transparentes, exigiria a intervenção muito mais activa, directa e permanente do Ministério Público, que não intervém agora porque a lei não permite. Permite à polícia fazê-las e dar conhecimento da sua existência ao procurador-geral da República.

E não do seu conteúdo?
Há leituras da lei que defendem que não do seu conteúdo. A prática corrente é dar conhecimento numérico.

Tomou posse o presidente de uma unidade de missão que irá introduzir a Lei-quadro da Política Criminal. É o primeiro passo na direcção da introdução do princípio da oportunidade?
Temos colaborado muito com o dr. Rui Pereira mesmo a nível sindical e certamente que ele não se aproxima minimamente da ideia de introdução do princípio da oportunidade. O problema desta lei-quadro tem a ver com uma questão muito simples: a Lei deve reflectir a realidade, porque se não o fizer criar-se-á apenas mais um pano de fundo igual ao das férias judiciais para mascarar a realidade.

Quando diz a realidade quer dizer o quê?
Neste momento a realidade é que quem define a política criminal é efectivamente o Governo através da direcção da Polícia Judiciária. É através dos meios que a Polícia Judiciária decide ou não afectar a determinado tipo de investigações que umas ou outras avançam ou não. Há muitos casos em que o Ministério Público pretende fazer determinado tipo de investigações e a Polícia Judiciária pura e simplesmente diz que não tem meios para as concretizar. Ou que as suas prioridades não apontam para esse sentido. O que posso dizer é que, dependendo o director da Polícia Judiciária do Governo e tendo a PJ reiteradamente este tipo de comportamentos, quem tem sido responsável pela política criminal em Portugal é a tutela da Polícia Judiciária. Definir numa lei quadro irá limitar um pouco a responsabilidade do próprio ministro da Justiça. O risco desta situação é, mantendo-se a prática actual, encontrar-se um bode expiatório para o não cumprimento da lei.

Ou seja, o procurador-geral da República (PGR)?
O procurador-geral da República. Isto é transformá-lo no bode espiatório...

Mas alguém tem de o responsabilizar.
Para responsabilizar o procurador-geral ou o Ministério Público pela execução da política criminal era preciso que o Ministério Público tivesse poderes directivos sobre a Polícia Judiciária. Que não tem.

E também subscreve que o Ministério Público deve ter a tutela da Polícia Judiciária de forma a tornar mais eficazes as investigações?
Tudo o que contribua para a coerência do sistema e para a sua transparência é melhor. O sistema actual não é positivo, porque temos um responsável constitucional e legal pela investigação criminal que é o Ministério Público. E temos uma outra estrutura, que é quem efectivamente põe e dispõe dos meios para a investigação, que não depende das orientações do Ministério Público.

O procurador-geral não pode então ser chamado à responsabilidade?
O facto é que o PGR não tem poderes funcionais. Sobre esta lei-quadro, ainda não sei como é que vai ser mas gostaria de saber perante quem é que ele irá prestar contas.

À Assembleia da República?
É desejável que assim seja. Se a questão for colocada noutro plano, isto é, a Assembleia da República define as prioridades e depois o PGR responde perante o Governo, teremos uma situação um pouco esquizofrénica que irá permitir ir substituindo procuradores, como agora se substituem comandantes dos bombeiros quando os fogos estão fora de controlo. Uma lei desta natureza é importante do ponto de vista da transparência, mas vai trazer muitos riscos para o sistema tal qual ele existe actualmente. E não estou a falar do procurador-geral.

Como?
O Parlamento vai ser confrontado com a realidade. E os cidadãos irão finalmente perceber o que vai acontecer.

Então ganha-se em transparência?
Se assim for. O meu receio é que não seja assim.

Os incêndios conseguiram abrir caminho até à magistratura? Diz-se que não promovem as prisões e que não prendem.
Ainda bem que não caiu a estátua do Cristo-Rei porque certamente a responsabilidade também seria nossa. Essa é uma questão que tem sido muito mal apresentada perante a opinião pública...

É como as férias?
Não, é pior, porque lida com uma situação muito mais grave, com situações de pessoas que estão desesperadas. As férias são um “fait divers” que mais cedo ou mais tarde reencontrará o seu caminho normal. Há soluções boas para aproveitar o período de férias judiciais que poderiam melhorar bastante o sistema. Na altura apresentámo-las ao ministro e acho que ele até manifestou alguma simpatia por essas soluções, mas o sr. primeiro-ministro teve aquele discurso simplista sobre a questão e o sr.ministro teve necessidade de sustentá-lo. Esta questão é grave porque corre-se o risco de deslegitimar, de uma vez por todas, toda acção da Justiça. Colocar esta questão da forma como tem sido colocada parece-me um bocadinho passa-culpismo.