Se o combate aos "privilégios" dos políticos vai avançando a um moroso ritmo, já o "combate" às férias judiciais avançou decisivamente com a aprovação da respectiva lei na Assembleia da República. Uma medida genericamente positiva, mas que tomada avulsamente, para já, corre o risco de deixar o sistema judicial em pior estado do que estava...
Locallo condenou Caruso a oito anos de prisão mas com o habitual crédito de "dia-por-dia" (que retira ao tempo de prisão a cumprir mais um dia por cada dia de prisão cumprido), este reduziu o tempo a cumprir a quatro anos. Um crédito de seis meses por "serviços meritórios", concedido rotineiramente aos reclusos em virtude da sobrelotação do sistema prisional, diminuiu o tempo a cumprir para três anos e meio. Um crédito de três meses pela frequência escolar durante a prisão reduziu-o a três anos e três meses."
Este excerto do livro Courtroom 302 da autoria do jornalista Steve Bogira, que relata o dia-a-dia de um tribunal criminal norte-americano, dá-nos a noção de como as realidades judicial e penal são diferentes e de como não é possível avaliar os sistemas judiciais sem descer à aplicação concreta da lei. Dos oito anos de prisão em que o réu Caruso foi condenado, e que seriam a notícia nos jornais, resta uma condenação efectiva em menos de metade da pena anunciada. E se tivermos em conta a possibilidade das saídas precárias e de trabalho e a possibilidade de cumprir o final da pena em prisão domiciliária com pulseira electrónica, vemos que há várias realidades que temos de ter em conta ao analisar o funcionamento ou disfuncionamento de um sistema judicial.
No nosso caso, as férias judiciais do Verão, que o Governo decidiu reduzir de dois meses para um mês são, também, uma realidade complexa que alberga muitas realidades. Independentemente das razões reais que deram origem a tal período de férias, certo é que não é aceitável a defesa dos dois meses de férias. Não é defensável, em primeiro lugar, em termos de serviço público. E, verdade seja dita, também não há nenhuma especificidade do sistema judicial que obrigue à paragem dos tribunais por tanto tempo no Verão.
Mas tal facto não determina por si só que as mesmas possam ser abolidas, "de uma penada", em nome de um sacrossanto combate ao défice público e aos privilégios corporativos, devidamente denunciados pelo procurador-geral adjunto Eduardo Maia Costa nas páginas do PÚBLICO, sem ter em conta as realidades que existem por "detrás" desse "excesso" de férias. O facto de, naturalmente, a opinião pública considerar justa, de uma forma genérica, a medida de redução das férias não quer dizer que a mesma não deva ser acompanhada de outras reformas, para que as soluções finais quanto à qualidade do serviço prestado pela justiça sejam o mais eficazes possível.
E, nesse aspecto, o ministro da Justiça pode, de facto, dizer, como disse ao PÚBLICO em entrevista esta semana, que "há certas medidas que, se forem submetidas a processos prévios de consensualização, como tantas vezes aconteceu no passado, não conduzem a nada". Será, eventualmente, eficaz este "voluntarismo" governamental, mas o que é seguro é que a situação que, para já, se vive no mundo dos tribunais se estava a agravar progressivamente até à... chegada das férias judiciais. Em consequência de uma decisão de uma assembleia da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, um número crescente de juízes estava a cumprir com rigor a lei, nomeadamente ao só realizarem audiências na sala de audiências e não nos gabinetes e ao interromperem as audiências, impreterivelmente no fim de cada período do horário de trabalho do funcionalismo público. Os resultados desta atitude dos magistrados estava já a reflectir-se em inúmeros adiamentos e atrasos na realização das diligências judiciais...
É certo que a principal questão deste "confronto" não é só a duração das férias judiciais, como muitos e lúcidos magistrados já o disseram, mas a forma como foi aprovada esta lei, desacompanhada de outras medidas racionalizadoras do sistema e "recompensadoras" para quem efectivamente se dedica, de corpo e alma, ao "serviço público", será, muito provavelmente, determinante no "estado de espírito" dos magistrados no recomeço do ano judicial. Claro que se pode discutir se os magistrados têm de ter "estados de espírito" e se a sociedade e o poder político os devem ter em conta. Mas a relevância desse "estado de espírito" estava a crescer quando chegaram as férias judiciais. A partir de 15 de Setembro se verá se os prejuízos no funcionamento da máquina judicial que decorrem deste "estado de espírito" se irão agravar ou esbater...
Este "confronto" causa e pode causar aos cidadãos diversos prejuízos. Em primeiro lugar, desvia a atenção das reformas realmente necessárias no mundo da justiça, como é o escandaloso caso das execuções, por exemplo, onde são apresentadas uma tímidas reformas para desbloquear o andamento inicial das mesmas, mas que não enfrentam o drama de termos criado uma figura, os "solicitadores de execução", que congregam em si funções de juízes, funcionários judiciais e partes, sem terem uma preparação minimamente adequada. Feita com pouca "seriedade", a reforma da acção executiva é um dos factores mais relevantes do afundamento da justiça.
Mas outros riscos correm os cidadãos com "esta" redução das férias, a de que o Governo tente "dar em contrapartida" aos magistrados medidas avulsas, como a redução dos recursos admissíveis, seja a nível cível seja a nível penal, nomeadamente para o Supremo Tribunal de Justiça, com sério risco de diminuição das garantias dos cidadãos.
Embora o ministro da Justiça, na entrevista referida, afirme não lhe parecer existir um "excesso de garantismo", a verdade é que face a uma recente situação em que um arguido acusado de homicídio foi libertado por terem sido excedidos os prazos de prisão preventiva, as vozes que se ouviram não foi no sentido de tornar mais expedito o funcionamento do sistema, detectando as razões dos atrasos, mas sim o de restringir a possibilidade de recursos. Como há uns anos, quando se pôs a questão das excessivas prescrições em processos criminais, não se procurou ver onde estavam os atrasos que davam origem às prescrições e se colocou a hipótese de... alargar os prazos de prescrição! Espera-se, a bem de todos nós, que os magistrados não abdiquem nem dos seus direitos nem da defesa dos direitos dos cidadãos.
P.S. - Em Agosto, por motivo de férias não-judiciais, não haverá Do Mundo da Justiça...
Blog de apoio ao CUM GRANO SALIS
segunda-feira, 1 de agosto de 2005
Melhorar a justiça?
Por Francisco Teixeira da Mota, no Público de 1-8-2005:
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