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domingo, 30 de dezembro de 2007

Sentir o Direito - Música e crime

Seria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música
Todos nos recordamos do filme em que um grupo de delinquentes incita à violência contra polícias, ao ritmo do hip-hop. Tais fenómenos são frequentes. Movimentos políticos utilizaram a música para estimular a acção violenta, provocando estados de alma.
Os hinos em que grandes multidões dissolvem o indivíduo são uma constante da História. Hitler serviu-se magistralmente da ópera de Wagner para provocar, em comícios, um sentimento de orgulho racial e de belicismo.
Apesar disso, a música nunca é, em si – sem considerar as letras das canções –, algo de mau. Dizia Cecília Meirelles, a grande poetisa brasileira: “Eu canto porque o instante existe Sei que canto. E a canção é tudo.”
O cientista e filósofo Daniel Dennett lembra o papel da nona sinfonia de Beethoven na acção violenta dos jovens da ‘Laranja Mecânica’. O filme de Kubrick, inspirado na obra de Burgess, originou uma onda de violência que levou Dennett a questionar se a música deveria ser proibida, no caso de podermos garantir que estimula efeitos criminosos. O autor respondeu negativamente.
Na verdade, não está provada uma relação de causa e efeito entre a música e certa conduta. Sabemos apenas que cada pessoa procura na música algo de diferente e profundamente seu. Nada existe numa peça musical que cause o efeito de um vírus sobre o corpo indefeso. Assim, seria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música.
No entanto, deve considerar-se a democratização da cultura musical uma meta política que permite desenvolver aspectos profundos das capacidades humanas. A música digna desse nome permite atingir emoções e compreender coisas pertencentes a um mundo que a comunicação vulgar não atinge.
Se quisermos relacionar música e crime de uma forma pragmática podemos citar o caso brasileiro em que a música humaniza a favela ou, de um modo geral, as experiências de terapia através da música. A orquestra de Barenboim, juntando judeus e palestinianos, é um excelente exemplo de pacifismo. No ‘Titanic’, só os músicos mantiveram a luz da vida até ao último instante, afundando-se a tocar.
Num Natal recente, constatei que os reclusos de uma cadeia formavam grupos musicais e que essa forma de expressão era essencial para eles. A música encerrada em casas de espectáculos muito elitistas ou reduzida a fenómenos de moda não atinge, por vezes, a reinvenção da vida a que todos temos direito. E toda a justiça, como tentativa de reintegração, é uma reinvenção da vida. É ideal, tal como a poesia ou a música.
E há outra possibilidade?
Não. Como explica Cecília Meirelles, “a vida só é possível se reinventada”.
Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal, no Correio da Manhã