Fernanda Palma, Professora catedrática de Direito Penal, no Correio da ManhãSeria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música
Todos nos recordamos do filme em que um grupo de delinquentes incita à violência contra polícias, ao ritmo do hip-hop. Tais fenómenos são frequentes. Movimentos políticos utilizaram a música para estimular a acção violenta, provocando estados de alma.Os hinos em que grandes multidões dissolvem o indivíduo são uma constante da História. Hitler serviu-se magistralmente da ópera de Wagner para provocar, em comícios, um sentimento de orgulho racial e de belicismo.Apesar disso, a música nunca é, em si – sem considerar as letras das canções –, algo de mau. Dizia Cecília Meirelles, a grande poetisa brasileira: “Eu canto porque o instante existe Sei que canto. E a canção é tudo.”O cientista e filósofo Daniel Dennett lembra o papel da nona sinfonia de Beethoven na acção violenta dos jovens da ‘Laranja Mecânica’. O filme de Kubrick, inspirado na obra de Burgess, originou uma onda de violência que levou Dennett a questionar se a música deveria ser proibida, no caso de podermos garantir que estimula efeitos criminosos. O autor respondeu negativamente.Na verdade, não está provada uma relação de causa e efeito entre a música e certa conduta. Sabemos apenas que cada pessoa procura na música algo de diferente e profundamente seu. Nada existe numa peça musical que cause o efeito de um vírus sobre o corpo indefeso. Assim, seria absurdo considerar que há uma instigação ao crime através da música.No entanto, deve considerar-se a democratização da cultura musical uma meta política que permite desenvolver aspectos profundos das capacidades humanas. A música digna desse nome permite atingir emoções e compreender coisas pertencentes a um mundo que a comunicação vulgar não atinge.Se quisermos relacionar música e crime de uma forma pragmática podemos citar o caso brasileiro em que a música humaniza a favela ou, de um modo geral, as experiências de terapia através da música. A orquestra de Barenboim, juntando judeus e palestinianos, é um excelente exemplo de pacifismo. No ‘Titanic’, só os músicos mantiveram a luz da vida até ao último instante, afundando-se a tocar.Num Natal recente, constatei que os reclusos de uma cadeia formavam grupos musicais e que essa forma de expressão era essencial para eles. A música encerrada em casas de espectáculos muito elitistas ou reduzida a fenómenos de moda não atinge, por vezes, a reinvenção da vida a que todos temos direito. E toda a justiça, como tentativa de reintegração, é uma reinvenção da vida. É ideal, tal como a poesia ou a música.E há outra possibilidade?Não. Como explica Cecília Meirelles, “a vida só é possível se reinventada”.
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