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sábado, 22 de dezembro de 2007

Advogados à solta

Por Francisco Teixeira da Mota, Advogado

As polémicas públicas entre advogados são, normalmente, de grande contundência verbal

A agitação judiciária da semana passada foi a eleição do advogado António Marinho Pinto, que apoiei na sua candidatura, para o lugar de bastonário da Ordem dos Advogados e a sua repercussão pública.
As mediatizadas tomadas de posição dos ex-bastonários José Miguel Júdice, que igualmente apoiei ao tempo da sua candidatura a bastonário, e António Pires de Lima foram radicais como não é muito habitual no nosso país. O novo bastonário não vestiu a pele de polemista e teve razão em não o fazer.
Quanto aos processos disciplinares de que se falou agora, tenho a dizer que embora tenha criticado aqui nesta coluna com violência as declarações de José Miguel Júdice, também igualmente discordei que fosse necessário submeter um ex-bastonário a processos disciplinares quando estavam em causa só eventuais "excessos de linguagem". E convém ter presente que o novo bastonário nas suas polémicas públicas não é conhecido por ser brando na utilização das palavras.
De resto, a sua polémica via blogues com o advogado José António Barreiros, que apoiei na sua candidatura para o conselho superior, é bem esclarecedora do grau de contundência que a discussão entre advogados pode atingir.
Ainda é cedo para saber como vão ser as relações entre os advogados e a sua Ordem neste mandato de Marinho Pinto mas seria de toda a conveniência evitar que as naturais e insanáveis divergências impludam a Ordem.
Se é verdade que o Estado democrático de direito tem de assentar na separação dos poderes que na nossa Constituição é consagrada através da Assembleia da República, do Presidente da República, do Governo e dos tribunais, não é menos verdade que no mundo dos tribunais é essencial que haja um órgão representante dos advogados que seja actuante, capaz não só de resolver os seus problemas internos como igualmente de intervir de forma socialmente útil e relevante na sociedade, nomeadamente na defesa dos direitos dos cidadãos.
Enquanto se discute acaloradamente quem representa quem na Ordem ou quais os interesses sociais por detrás de cada bastonário em polémica, os cidadãos também se preocupam com outras questões de carácter legal talvez mais relevantes.
As medidas legais e práticas que se anunciam quanto ao aumento da implementação de serviços de videovigilância e do controlo da nossa vida em geral pelo Estado, intrometendo-se cada vez mais não só dentro das nossas casas como dentro do nosso corpo, são um evidente motivo de preocupação.
As medidas de videovigilância que foram adoptadas para o Porto, nomeadamente o facto de a captação de imagens só ser feita à noite, embora sejam sempre violadoras de alguma privacidade e do direito à imagem de cada um, parece estar dentro do razoável numa ponderação constitucional dos direitos e interesses em jogo. A ver vamos. Mas isso não impede que seja bem visível o crescendo de intromissão do Estado nas nossas vidas e intimidade. A criação das bases de dados do ADN onde passará a constar material genético de pessoas condenadas criminalmente, de pessoas desaparecidas, para sua localização e de cidadãos comuns que quiserem aderir a esta catalogação nacional, para já, é um bom exemplo.
Estas bases já existem há algum tempo em Inglaterra ou em França onde se verificou, com o decorrer do tempo, uma crescente liberalização legislativa na "doação obrigatória" de material genético. Em França, recentemente, miúdos que estavam a retirar umas placas de identificação das ruas foram obrigados a entregar o seu ADN.
Mas também no campo do nosso corpo e da saúde o afã existencial da ASAE tem levantado inúmeras preocupações públicas. Para além dos mitos criados sobre a actividade daquele órgão de policia criminal, a verdade é que o comunicado da ASAE não afasta todas as questões levantadas na petição nacional contra as suas excessivas actividades, que a opinião pública não deixa de sentir com algum incómodo. Se o cumprimento da lei, em princípio, não deve levantar objecções, já aplicações pouco flexíveis com interpretações da lei fundamentalistas levantam as maiores dúvidas e podem ser um factor não só de maior injustiça social como de aniquilação de realidades económicas, sociais e culturais que devem ser respeitadas. As bolas-de-berlim têm de continuar a ter o direito de nos surgir, na praia, de dentro duma cesta onde repousam todas juntas enquanto esperam a chegada da suave tenaz ou num tabuleiro já algo torto com o fundo com açúcar espalhado.
Há aqui que pensar, como em muitas outras áreas de actuação intrusiva do Estado, num novo direito emergente dos cidadãos que se contrapõe à crescente perda de privacidade e de individualidade: o direito a não ser saudável.
Este novo direito tem a sua legitimação no direito à diferença e à privacidade quando confrontados com a acção normalizadora do Estado no campo da saúde pública e privada. Nem todos nós queremos ser saudáveis ou ter um padrão predeterminado de índice de massa corporal ou cultural, segundo os padrões da época ou do governo em que vivemos.
Dado que todos os corpos terminarão de uma maneira inglória, não parece assim tão justificada a necessidade de os preservar saudáveis até esse momento. Pelo menos é seguramente aceitável que haja quem tenha essa opinião e esteja disposto a não querer ser saudável e a reger-se por padrões culturais em que tal objectivo não é primordial.
Parece-me inequívoco que temos o direito a continuar a poder comer chamuças caseiras fantasticamente temperadas e fritas sem nos preocuparmos com o mal que nos fazem ao colesterol.
Para a semana continuamos a falar de advogados.